O combate à violência contra a mulher esbarra em inúmeros desafios. A impunidade, a escassez de recursos e de estrutura de apoio às vítimas, a falta de conscientização, a normalização das agressões, o preconceito, o racismo, a misoginia e o machismo estrutural são apenas alguns deles. Mas muitas dessas dificuldades no enfrentamento ao problema da violência de gênero passam por uma outra questão que é a divergência nos dados estatísticos.

Os números dos organismos oficiais que trabalham com a segurança pública sempre estão abaixo daqueles computados por entidades que se dedicam a fazer o monitoramento dos casos de violência. Esse trabalho independente busca outras fontes de informação, além dos boletins de ocorrência, inquéritos policiais e processos judiciais instaurados.

Uma das principais consequências da discrepância entre os números disponíveis é a dificuldade de implementação de políticas públicas, uma vez que os dados influenciam a tomada de decisão pelos governos, em todas as suas esferas.

No Paraná, por exemplo, nos últimos dois anos, os registros de feminicídio contabilizados pela Sesp (Secretaria Estadual de Segurança Pública) ficaram abaixo dos números levantados pelo Lesfem (Laboratório de Estudos de Feminicídios), da UEL (Universidade Estadual de Londrina).

Enquanto o órgão oficial do governo do Estado computou 190 feminicídios entre 2023 e 2024, sendo 81 e 109 casos, respectivamente, o Lesfem identificou 271 crimes desse tipo, que é a soma dos 127 casos de feminicídio registrados em 2023 e dos 144 contabilizados em todo o ano passado.

A diferença, de quase 43%, pode ter implicações diretas no que os governos decidem ou não fazer para combater a violência contra a mulher, uma vez que a implementação de políticas públicas baseia-se em estatísticas. E quando esses números estão muito aquém da realidade, o que se tem é uma imagem distorcida do problema.

“A subnotificação dos casos oficiais, para nós, enquanto militantes contra o feminicídio, é muito significativa porque pode passar a sensação de que reduziu e diminui o impacto na sociedade”, disse a integrante do Néias - Observatório de Feminicídios de Londrina, Cecília França.

O observatório atua com base nos dados do Lesfem, um espaço de pesquisa interdisciplinar formado por membros da UEL e de universidades federais do país para produção e análise de dados sobre feminicídio. Um dos resultados do trabalho do laboratório é o monitoramento dos casos de feminicídio consumado e tentados, divulgados em um relatório anual desde 2023.

Uma das fontes de pesquisa do Lesfem são as notícias publicadas em veículos de comunicação de todo o país e outras fontes de divulgação pela internet. “O método de classificação do Lesfem que a gente considera no observatório segue diretrizes nacionais e internacionais de feminicídio”, explicou França. “Há casos com todos os indícios de feminicídio, que têm perfil para serem classificados assim, mas os órgãos oficiais não consideram.”

Um desses casos aconteceu em Londrina, envolvendo Clarissa Maria de Mendonça, que em setembro de 2023 foi esfaqueada por Aaron Delesse Dantas, seu ex-colega de trabalho que passou a persegui-la após a jovem se recusar a ter um relacionamento com ele.

Na noite do crime, Dantas esfaqueou também Júlia Garbossi e Daniel Suzuki, amigos de Mendonça, que acabaram morrendo.

O autor do crime foi preso e a Polícia Civil o indiciou pelo duplo homicídio qualificado de Garbossi e Suzuki e tentativa de feminicídio contra Mendonça. O delegado entendeu que houve discriminação contra a vítima sobrevivente por razões de gênero.

A denúncia foi aceita pelo MP (Ministério Público), mas o autor dos crimes responde por tentativa de homicídio qualificado e não por feminicídio.

Ao contrário do delegado, o promotor responsável pelo caso, Vitor Honesko, da 11ª promotoria, em Londrina, considerou que ao tentar matar a ex-colega de trabalho, Dantas não menosprezou ou discriminou Mendonça por ela ser mulher. Segundo o promotor, o acusado tentou matá-la porque seus sentimentos não foram correspondidos.

“Se eu denunciasse por feminicídio, o processo iria para o júri e derrubaria a qualificadora porque não se enquadra no conceito legal de feminicídio”, argumentou Honesko. “O conceito técnico (de feminicídio) é muito delimitado.”

FALTA DE INTEGRAÇÃO

Sobre a diferença entre os dados estatísticos elaborados pelos órgãos oficiais e os números levantados por organismos que atuam na prevenção e combate ao feminicídio, Honesko avalia não se tratar de um caso de subnotificação, mas da falta de integração entre os sistemas utilizados para a formação das bases de dados oficiais.

Como exemplo, o promotor compara os dados do Projudi referentes à 1ª Vara Criminal de Londrina, a quem compete processar os casos de feminicídio, com os dados do Sinesp, do Ministério da Justiça. No período de 2020 até maio de 2025, o Sinesp aponta oito feminicídios enquanto o Projudi contabiliza 14 feminicídios consumados e 30 tentativas. “O que falta é integração dos dados, falta uma forma de comunicar esses dados, que é muito precária no Brasil”, ressaltou Honesko. “Os sistemas estão sendo desenvolvidos ainda. Não é falta de vontade nem de gente apta. Falta gente para trabalhar.”

Independentemente dos números absolutos de feminicídio, qualquer que seja a fonte de dados utilizada no comparativo desse tipo de crime ao longo dos últimos anos, é possível perceber o aumento. Nenhum levantamento aponta redução.

Para tentar conter a escalada dos casos de violência de gênero, o MP iniciou um trabalho de prevenção. Diante do aumento dos casos, neste ano foram instaurados procedimentos administrativos dentro da 11ª promotoria para conversar com a rede de Londrina envolvida nesse tema. “Tivemos a iniciativa de entrar em contato com órgãos como o Conselho Municipal do Direito das Mulheres e o projeto Além do Horizonte, para ver como podem auxiliar na prevenção dos feminicídios em Londrina.”

A Sesp-PR foi procurada pela reportagem, mas não se pronunciou. No site do órgão governamental, a informação é que as estatísticas são elaboradas com base nos procedimentos instaurados pela Polícia Civil.

Ativistas defendem aplicação de Diretrizes Nacionais do Feminicídio

O Paraná não é um problema isolado. Assim como o Lesfem, há outros organismos espalhados pelo país que acompanham atentamente os casos de feminicídio. Um deles é o Fórum Cearense de Mulheres, que em 2023, divulgou um dossiê no qual confrontou os dados da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Ceará com os dados levantados pela entidade.

Os números oficiais estavam quase quatro vezes abaixo daqueles registrados pelo Fórum. Enquanto o governo cearense computou 58 feminicídios no Estado entre 2019 e 2020, o Fórum contabilizou, pelo menos, 208 crimes desse tipo no mesmo período.

Para o Fórum, é “inadmissível” que haja subnotificação. “Não se pode combater o feminicídio e a violência contra as mulheres sem dados reais’”, pontuou a entidade.

Militantes da causa defendem a aplicação das Diretrizes Nacionais do Feminicídio na elaboração dos inquéritos de morte violenta de meninas e mulheres.

Bem mais abrangentes, as diretrizes consideram feminicídios os crimes de natureza tentada ou consumada, que tenham sido praticados por pessoas com as quais as vítimas mantenham ou tenham mantido vínculos de qualquer natureza - íntimas de afeto, familiar, amizade - ou qualquer forma de relação comunitária ou profissional (relações de trabalho, nos espaços escolares, de lazer etc.) ou por pessoas desconhecidas pela vítima.

O documento reconhece também que os crimes podem ser praticados por indivíduos ou por grupos, sejam eles particulares ou agentes do Estado.(S.S.)

Pesquisa aponta escalada da violência contra a mulher no país

Todos os dias, dez mulheres são assassinadas no Brasil e a estimativa é que um terço dessas mortes seja feminicídio. Em 2023, foram 3.903 mortes, o maior patamar registrado desde 2018. O levantamento é do Atlas da Violência 2025, publicado em parceria entre o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Para cada 100 mil habitantes, 3,5 mulheres foram mortas no país. O número de mulheres vítimas de assassinato cresceu de 3.806 em 2022 para 3.903 em 2023, um aumento de 2,5%.

A pesquisa apontou ainda que 60% dos 177.086 casos de violência ocorreram no ambiente doméstico.

O crescimento da violência contra a mulher ocorre no mesmo momento em que há uma redução no número de assassinatos, de modo geral. O Brasil reduziu em 2,3% a taxa de homicídios entre 2022 e 2023. O índice de 21,2 foi o menor patamar da série histórica, iniciada em 2013.

A violência mais frequente observada em 2023 foi a física (37,4%), seguida pela múltipla (30,3%). A negligência representou 12% dos casos e a psicológica e a sexual tiveram a proporção, respectivamente, de 10,1% e 9,5% dos casos.

Ao longo da trajetória de vida, a negligência é a principal forma de violência contra mulheres de zero a nove anos de idade, com 49,5% dos casos.

A violência sexual se torna mais frequente na faixa dos dez aos 14 anos (45,7%), dos 20 aos 69 anos o maior índice é de violência física e, a partir dos 70 anos, a negligência volta a ser predominante (33,3%).

Quando se olha para as taxas de homicídios de mulheres nas 26 unidades da federação e mais o Distrito Federal, a maioria delas, 18 no total, ficaram acima da média nacional de 3,5%.

Roraima lidera a lista com uma taxa de 10,4 mortes por 100 mil habitantes, seguido do Amazonas e da Bahia, com 5,9 cada um.

O Paraná é o 12º colocado, com 3,9 mortes a cada 100 mil pessoas. O menos violento é São Paulo, com 1,6.

“É preciso compreender exatamente que o homicídio de mulher, o feminicídio, é o topo de uma espiral de violência”, disse a pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Manoela Miklos. “Essa mulher precisa ter acesso à saúde, justiça, políticas públicas de saúde mental e acolhimento, para que compreenda o que está acontecendo porque a revitimização é muito grande.”

No recorte por raça, mulheres negras são as vítimas mais frequentes de homicídio, com 2.662 casos ou 68,2% do total. “Os números evidenciam o trágico encontro entre a cultura patriarcal e o racismo estrutural, ambos fortemente enraizados no Brasil”, afirma o Atlas. (Folhapress)

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