Combate à aids completa 40 anos em luta contra o ostracismo
Apesar da baixa visibilidade e das campanhas informativas acanhadas de testagem, Sesa está otimista para bater a meta da ONU
PUBLICAÇÃO
terça-feira, 03 de dezembro de 2024
Apesar da baixa visibilidade e das campanhas informativas acanhadas de testagem, Sesa está otimista para bater a meta da ONU
Lúcio Flávio Moura - Especial para a FOLHA

O acrônimo AIDS, do inglês Acquired Immune Deficiency Syndrome (em português Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), ainda era grafado com todas as letras maiusculas quando o termo se tornou uma preocupação concreta na saúde pública do Estado nas últimas semanas de 1984.
Um paciente do infectologista Nelson Szpeiter, internado no Hospital Oswaldo Cruz, em Curitiba, apresentava um quadro de sarcoma de Kaposi, um tipo de câncer raro de pele que alastra manchas pelo corpo, já associado ao vírus naquele início de epidemia.
Em janeiro de 1985, já debilitado, o paciente foi transferido para o Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, e o diagnóstico de aids foi confirmado pelos infectologistas Rosana de Bianco e Jamal Suleiman. A internação foi curta, interrompida pelo óbito dias depois.
Entre os médicos, a preocupação já existia desde 1981, quando pesquisadores de Atlanta (EUA) perceberam o aumento dos registros de mortes por pneumonia pela bactéria Pneumocystis carinii e por sarcoma de Kaposi em homens jovens. Até então, essas doenças não haviam sido relacionadas a nenhum quadro clínico grave em indivíduos sem problemas imunológicos.
Pouco depois, as pesquisas apontaram a existência de um novo desafio para a saúde coletiva, chamada então pelo inapropriado termo da Doença dos 5H (Homossexuais, Hemofílicos, Haitianos, Heroinômanos e Hookers [termo em inglês que congrega os profissionais do sexo]). O termo aids só surgiu em 1982, por sugestão de Bruce Voeller, biólogo pesquisador e ativista gay.
Em 1984, especialistas identificaram o vírus responsável pela aids e o chamaram de Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV, na sigla em inglês), com transmissão pelo sangue ou por via sexual, um marco que ajudou a iluminar as pesquisas e a superar a fase de isolamento dos pacientes durante a hospitalização.
“Já estávamos na expectativa do aparecimento dos casos por aqui, mas ainda estávamos muito confusos sobre o tratamento. A partir da identificação do vírus, a situação mudou bastante”, conta o infectologista José Luís da Silveira Baldy, que foi responsável pelos primeiros atendimentos no Hospital Universitário em Londrina.
O primeiro caso na cidade foi praticamente simultâneo ao da capital, lembra o especialista, pioneiro reconhecimento nacionalmente por sua dedicação ao tratamento de pacientes vindos de muitas regiões do país, que eram recusados na sua cidade de origem.
“Sobre o primeiro caso, lembro que o pai nos procurou e disse que o filho estava chegando da Europa, onde havia sido diagnosticado com a doença e se seria possível fazermos o tratamento no HU. Obviamente disse que sim. Poucos meses depois, ele morreu, o que normalmente acontecia à época porque o AZT, que era o remédio da época, tinha pouco efeito”.
Baldy lembra que o HU chegou a tentar articular, sem sucesso, uma rede de atendimento que incluia os outros grandes hospitais da cidade. “Todos eles se recusaram a atender os pacientes e então montamos uma enfermaria exclusiva para os pacientes de aids”, relata.
Em horário de visitas, recorda-se Baldy, o preconceito ficava escancarado, já que os familiares não apareciam, por medo de contágio ou vergonha. “Foi um período muito difícil porque não tínhamos recursos terapêuticos. O que fazíamos era um tratamento humanizado, com paliativos para a dor e o sofrimento. Me lembro muito bem que naquele período, todas as travestis da cidade foram tratadas e morreram no HU”, lembra o ex-professor da UEL entre 1971 e 2008, ainda ativo e no comando de uma clínica de imunizações no centro da cidade.
Epidemia está concentrada em grupos específicos e cadeia de transmissão está enfraquecida
Quem nasceu até a década de 1970 tem na memória uma infinidade de comerciais de TV que tinha como objetivo combater o preconceito e informar as formas de prevenção da aids, especialmente o uso de preservativo.
Era uma avalanche, que oscilava entre conteúdos criativos e outros mais duvidosos.
Por anos, o tema se tornou onipresente nos noticiários da TV aberta, nas rádios e nos jornais, em cartazes nos postos de saúde, na dramaturgia, nas livrarias e nos outdoors. Lentamente, a aids foi saindo de cena, primeiro se tornando coadjuvante e depois apenas figurante no debate público.
A notícia aguardada por centenas de semanas mundo afora - o anúncio da cura da doença - nunca se materializou, mas o avanço nas pesquisas e o desenvolvimento de drogas eficientes transformaram as pessoas com HIV (e mesmo aquelas com sinais manifestos da síndrome) como pacientes de uma doença crônica, ainda letal em alguns grupos específicos.
O Dia Mundial de Combate à Aids e o Dezembro Vermelho lutam contra este ostracismo e agora estão focados no estímulo à testagem da população jovem e no tratamento precoce, ação estratégica para quebrar a cadeia de contágio. Devidamente medicada, a pessoa baixa substancialmente a carga viral ao ponto de tornar-se uma não-transmissora.
A saúde pública trata hoje a aids como uma epidemia concentrada em algumas populações mais vulneráveis, a população LGBTQIA+, a população carcerária e a população de rua. “Hoje o diagnóstico está acessível em toda a rede pública, com testes rápidos, com resultados em 30 minutos, uma vez detectado o vírus, o paciente é encaminhado a um centro de referência e onde ele é informado sobre os benefícios das terapias antirretrovirais, que pode fazer ele viver com HIV mas jamais com aids”, explica a chefe da Divisão de Doenças e Infecções Sexualmente Transmissíveis, Mara Carmem Ribeiro Franzoloso, da equipe gestora da Secretaria Estadual de Saúde.
O combate também é feito com outras duas ferramentas, que é a profilaxia pré-exposição, quando a medicação é tomada como prevenção, e na pós-exposição, quando a pessoa vítima de violência sexual é medicada ainda antes da testagem.
“O controle rigoroso nos bancos de sangue, a distribuição de preservativos, as campanhas para estimular o hábito de testes rápidos anuais na população sexualmente ativa se somaram à eficiência dos atuais medicamentos e nos deram novas perspectivas. Trabalhamos com muita confiança para bater a meta de erradicação da aids como problema de saúde pública em 2030”, explica, lembrando que há um plano nacional neste sentido inspirado em uma iniciativa da ONU.
Dezembro Vermelho
O Programa de DST/Aids da secretaria preparou uma extensa programação para esta primeira semana de dezembro na capital e no interior, com muitos eventos em parceria com os municípios, como seminários, ações nas escolas e mutirão de testagem.
Em Curitiba, a primeira atividade foi um evento promovido no pioneiro Hospital Oswaldo Cruz, que reuniu especialistas, profissionais da saúde e a comunidade para um momento de aprendizado e reflexão sobre o tema. Nesta terça-feira (3), também em Curitiba, na Praça Santos Andrade, serão distribuídos testes rápidos, distribuição de preservativos internos e externos, autoteste e informações sobre prevenção.
Em Londrina, até sexta-feira (6), a Secretaria Municipal de Saúde vai ampliar o horário de atendimento no Centro Integrado de Doenças Infecciosas (Cidi) para a realização de testes rápidos de HIV.
O prédio que fica na Alameda Manoel Ribas, quase na esquina com a Rua Souza Naves, atende normalmente das 7h30 às 11h30. Nos próximos dias, vai funcionar também das 13h30 às 18h.
Outra iniciativa realizada em alusão ao Dezembro Vermelho foi o IV Simpósio de HIV/Aids de Londrina realizado na noite de segunda-feira (2) no auditório do HU.
O esforço para que a testagem rápida se torne um hábito
Nada é mais importante que a testagem quando se fala em aids décadas depois do seu surgimento. “Precisamos saber onde estão as pessoas vivendo com o vírus porque muitos deles não sabem”, resume Lázara Regina Rezende, da equipe do Centro de Testagem e Aconselhamento Dr. Bruno Piancastelli Filho (CTA).
O teste rápido existe na rede pública de saúde desde 2008 e é indicado para quem se coloca em risco na vida sexual. “Em algumas populações, a recomendação é que o teste seja feito mais de uma vez por ano. Ou seja, uma ação que esteja na lista de hábitos desta pessoa”.
Quem quiser se testar deve procurar o posto de saúde do seu bairro. Alguns deles fazem o teste na hora em determinados dias da semana, enquanto outros fazem o encaminhamento para um local próximo.
Quem rotineiramente circula pelo centro, basta procurar o prédio da Secretaria de Saúde que fica próximo à Concha Acústica, na Alameda Manoel Ribas, e solicitar o procedimento.
No CTA também está disponível o autoteste, um kit que também é distribuído em eventos especiais e que pode ser levado para casa e para outros membros da família.
Nesta modalidade, se o teste der positivo é preciso procurar a atenção primária para a realização do teste rápido e confirmar ou não o diagnóstico.
“Na minha avaliação, falta sim uma divulgação maior da importância da testagem, que ela é gratuita e acessível em um local próximo de casa. Às vezes um pôster bem visível na unidade de saúde pode ajudar neste esclarecimento”, avalia Lázara
Há quem defenda, por exemplo, a venda destes testes em máquinas de autoatendimento espalhadas, por exemplo, em farmácias que funcionam à noite.
Lázara admite que muitas vezes os profissionais da saúde se inibem em esclarecer as pessoas sobre a existência e a importância dos testes rápidos porque muitas se ofendem, como se estivessem sendo chamadas de promíscuas, uma das barreiras que também impediu a distribuição em massa dos preservativos nos primeiros tempos da aids.
Em tempos de conservadorismo em alta, ações discretas tem feito a diferença e contribuído para o Paraná se tornar um Estado com forte redução na incidência da doença.
A Secretaria Estadual de Saúde conta com um programa ativo que forma jovens multiplicadores em campanhas de uso de preservativo, uma das maneiras mais efetivas para que os números de pessoas com HIV/aids continuem em queda. “Se um profissional de saúde disser aos jovens o quanto este hábito é importante, talvez ele se conscientize. Mas quando um outro colega da mesma idade difunde esta ideia, a chance de uma mudança real de comportamento é muito maior”, pondera Mara Carmem. “É preciso dizer que é melhor não ter uma doença crônica, que é melhor não tomar remédio durante a sua vida inteira”.
Resumo dos primeiros anos da epidemia no Paraná
No final de 1984, o médico infectologista e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Nelson Szpeiter, atendeu um paciente com suspeita da doença no Hospital Oswaldo Cruz, em Curitiba. Era um caso de sarcoma de Kaposi. No início de 1985, o paciente foi transferido para o Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, onde o diagnóstico de aids foi confirmado pelos infectologistas Rosana de Bianco e Jamal Suleiman. Ele morreu dias depois.
Em Londrina, o primeiro caso foi confirmado no início de 1985, um paciente de cerca de 30 anos, homossexual, que vivia na Europa e que preferiu se tratar na cidade a pedido da família. Ele morreu logo em seguida.
Os primeiros casos da doença no Paraná ocorreram em homossexuais masculinos. Em agosto de 1986, Elenice Deffune, médica chefe do Hemepar, comunicou um caso de aids de um hemofílico em Foz do Iguaçu.
Em abril de 1987, foi notificado o primeiro caso por transfusão sanguínea. Posteriormente, foram diagnosticados casos em bissexuais e usuários de drogas injetáveis.
Irati e Ponta Grossa também confirmaram notificações de casos da doença em 1987, sinalizando que a epidemia havia se alastrado para todas as regiões do Estado.
Fonte: “Histórias da AIDS no Brasil (1983-2003) - Volume Um
As respostas governamentais à epidemia”, de Lindinalva Laurindo-Teodorescu e Paulo Roberto Teixeira (publicação de 2015 do Ministério da Saúde, com apoio da Unesco)
Números
-De 1980 a junho de 2023, foram registrados 1.124.063 casos de aids no Brasil
-Em 2022, foram 10.994 óbitos por aids, uma taxa de mortalidade de 4,1 óbitos por 100 mil habitantes. O acesso ao tratamento com antirretrovirais tem contribuído para a redução da mortalidade. A taxa de mortalidade sofreu decréscimo de 26,5% entre 2012 e 2022.
-Entre 2012 e 2022, um total de 52.415 jovens com HIV, de 15 a 24 anos, de ambos os sexos, evoluíram para aids. Em 2022, a razão de sexos entre jovens de 15 e 24 anos foi de 28 homens para cada dez mulheres.
- A taxa de detectação de aids no Paraná caiu 21,9% entre 2012 e 2022
Fonte: Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde de 2023
Casos de AIDS em adultos no Paraná em 2024*
Paraná 570
Curitiba 224
Londrina 78
Maringá 75
Ponta Grossa 45
Cascavel 34
Pacientes com HIV em acompanhamento
Paraná 1518
Curitiba 587
Maringá 154
Londrina 101
Foz do Iguaçu 98
Paranaguá 78
Número de casos registrados HIV/Aids
1994 - 633
2004 - 1.209
2014 - 3.909
2024 - 2.088*
Mortalidade por Aids
2022 - 564
2023 - 554
2024 - 379*
*Até setembro
Fonte: Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan)

