O Código Florestal Brasileiro completa 10 anos em 2022, no entanto ainda enfrenta muitos desafios. Conforme o Sicar (Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural), há quase 5,5 milhões de hectares de áreas rurais sobrepostas a áreas de conservação, o que representa 2% desses territórios. Já em terras indígenas a sobreposição de áreas rurais chega a 12,3 milhões de hectares, ou seja, 10,4% das áreas disponíveis. Além disso, a Amazônia segue batendo recordes de desmatamento, além dos incêndios florestais e a perda da biodiversidade.

Toda essa situação gera insegurança jurídica para os negócios e coloca em risco a conservação ambiental. A nova versão do Código Florestal brasileiro, um dos mais ricos e completos do mundo, foi amplamente discutida por diversos setores da indústria, e incluiu a proteção à vegetação nativa e a redução dos gases de efeito estufa, o que foi pauta de diversos encontros mundiais entre grandes potências.

A reportagem da Folha conversou com Antonio Borges, CEO da PlantVerd, uma startup que opera na execução de serviços ambientais para a recuperação de áreas degradadas em todo o Brasil. Ele é formado em Direito, com especialização em gestão do Meio Ambiente pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) e possui pós-graduação em restauração, licenciamento e adequação ambiental, pela Ufscar (Universidade Federal de São Carlos). Borges sempre esteve envolvido nas causas ambientais e foi indicado pela Época Negócios um dos 50 brasileiros mais influentes em inovação ambiental. Tem como histórico mais de 1.400 hectares restaurados com novas florestas nativas, mais de 2.300.000 mudas plantadas.

Antonio Borges, CEO da PlantVerd, grande importância desse novo Código Florestal é trazer esse pensamento atual, no sentido de proteção.
Antonio Borges, CEO da PlantVerd, grande importância desse novo Código Florestal é trazer esse pensamento atual, no sentido de proteção. | Foto: Divulgação/ Alessandra Sabbag

A lei anterior ao Código Florestal é de 1965. O que mudou desde a implantação do Código Florestal?

Era necessário a gente ter uma atualização importante nas leis ambientais, até porque houve uma atualização na lei de crimes ambientais. Chegaram a falar que esse Código Florestal foi uma anistia para quem cometia crimes ambientais, porque realmente anistiou quem fez desmatamentos até 22 de julho de 2008 e aderisse ao Código. No entanto, a gente vem de uma série de evoluções. Primeiro havia um incentivo à abertura de várzeas para cultivo, com desmatamento. Depois fomos vendo que a proteção das florestas era necessária, e já na geração passada vimos que não poderíamos continuar nesse nível de desmatamento, senão iríamos ter impactos devastadores. A grande importância desse novo Código Florestal é trazer esse pensamento atual, no sentido de proteção, e trazer programas como o CAR (Cadastro Ambiental Rural) quanto o PRA (Programa de regularização ambiental), que é o que vai vencer o prazo para inscrição agora com 10 anos.

Antonio Borges, CEO da PlantVerd, grande importância desse novo Código Florestal é trazer esse pensamento atual, no sentido de proteção.
Antonio Borges, CEO da PlantVerd, grande importância desse novo Código Florestal é trazer esse pensamento atual, no sentido de proteção. | Foto: Divulgação/ Alessandra Sabbag
Antonio Borges, CEO da PlantVerd, grande importância desse novo Código Florestal é trazer esse pensamento atual, no sentido de proteção.
Antonio Borges, CEO da PlantVerd, grande importância desse novo Código Florestal é trazer esse pensamento atual, no sentido de proteção. | Foto: Divulgação/ Alessandra Sabbag

Dois princípios da lei anterior foram mantidos, que são as APP (Áreas de preservação permanente) e a RL (Reserva legal), que estão presentes na legislação de 1965. Por que o senhor acha que foi importante mantê-los?

As áreas de preservação permanente estão nos locais de abastecimento de grandes mananciais. Na nascente do rio São Francisco, as áreas nas cabeceiras de morro são os grandes responsáveis pela quantidade de água que têm o rio. E as áreas de preservação permanente, como as matas ciliares, são as grandes responsáveis por evitar que os rios fiquem assoreados e para evitar que o herbicida, que está sendo utilizado numa lavoura, chegue na água, que às vezes é um manancial de abastecimento. A reserva legal fecha tudo isso promovendo realmente o encontro dessas vegetações dentro da propriedade. A hora que eu deixo a reserva legal de 20% ou 35%, ou até 80% da Amazônia legal eu proporciono o fluxo gênico tanto da fauna, com o cruzamento da fauna em espaços diferentes e eu tenho esses espaços verdes para a fauna circular, quanto eu promovo também um fluxo gênico da vegetação, com o cruzamento de espécies de diferentes localidades e aí tendo espécies mais resistentes. Eu tenho essa reserva biológica de vegetação extremamente importante para a gente manter e preservar a biodiversidade.

E quais são os desafios desses pontos?

A recuperação. Foi proposto inicialmente que teriam 20 anos para fazer essa regularização, que agora são 10, mas nós vimos que isso não deu resultado satisfatório e será necessária a intervenção para a recuperação dessas áreas que, muitas vezes, estão degradadas ou com uma pastagem de muitos anos. Muitas vezes, o pequeno produtor não tem condição financeira. A gente está precisando fazer uma correspondência, uma combinação das áreas de produtores que precisam ser reflorestada e pegar as grandes empresas que precisam reflorestar áreas e juntar isso. São Paulo tem feito isso. Ainda não está no ápice, mas São Paulo já trilhou um bom caminho.

O Brasil tinha se comprometido em reduzir até 2025 as emissões de gases de efeito estufa em 37% em comparação com 2005, mas a gente vê que que não existe esse comprometimento do atual governo com essa preservação das matas e florestas. E como é que você vê tudo isso, inclusive à luz do Código Florestal?

Infelizmente, há um problema cultural nesse governo no sentido de desrespeito à natureza. Quando uma liderança não dá a mínima para o meio ambiente, você passa a ter uma série de outras pessoas seguindo o exemplo. Houve o aumento do desmatamento, o aumento dos incêndios na Amazônia, com o total desrespeito à legislação ambiental, no sentido de falar que o prazo de registro vai ser prorrogado e não tem necessidade de aderência. O índice de adesão ao CAR diminuiu nesse governo. O índice de queimadas na Amazônia e no Brasil como um todo cresceu muito nesse governo. O índice de desmatamento cresceu muito e os focos de incêndio também. Infelizmente, nós retrocedemos muito na questão de proteção ambiental. Nós temos boas leis, sob o meu ponto de vista. A lei de compensação, por exemplo, impõe que a cada árvore cortada da Mata Atlântica, seja compensada com o plantio de 25 a 30 árvores no lugar. A nossa legislação é fantástica nesse sentido, mas ela não está sendo cumprida. Quem que vai lá fazer essa vistoria para ver se essa árvore que foi plantada por um processo de supressão vegetal realmente virou uma floresta?

O CAR foi um dos principais instrumentos introduzidos por esse Código Florestal. No entanto, tem a questão de ser um registro público de âmbito nacional, mas a implementação se dá na esfera estadual. Como lidar com duas esferas diferentes e integrar todos esses dados?

É uma ferramenta muito importante, porque se você pegar os dados de focos de incêndio, a minoria deles foi em cima de áreas que já tinham um CAR. É um instrumento que proporcionará um nível de controle grande quando estiver funcionando. Infelizmente, temos essa falta de comunicação entre município, estado e União. O desafio é realmente essa uniformização das informações. Infelizmente, ainda não temos um processamento desses dados, em escala. Até o fim do ano passado, por exemplo, a gente tinha analisado 2% dos CARs, que tinham sido apresentados. É um número muito baixo. Fica esse jogo de troca-bola. Quem vai fazer essa análise? É o estado? É a União que vai fazer esse processo final? O prazo de adesão já está vencendo. Será que o brasileiro já está acostumado com essa prorrogação de prazo, e por isso que já não liga e deixa a decisão para a última hora? Mas a comunicação entre o estado e a União é um desafio.

Essa questão da do gargalo da análise e validação dos cadastros inscritos realmente tem sido um desafio. Como você vê uma solução para isso?

Um exemplo prático. Eu estava conversando com o pessoal do comitê de bacias do PCJ (Comitês das Bacias Hidrográficas dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí ), em São Paulo. Nós estamos buscando áreas para reflorestamento por lá. A gente faz uma proposta com um projeto de reflorestamento, com base nas informações que essa pessoa informou no CAR. 100% dos casos que nós pegamos estavam com sobreposição de áreas ou informação incorreta. Informaram antes no CAR que aquela área já tinha floresta e, quando você chega lá, não tem. Ou se já informaram que lá não tinha florestas e quando chega lá e tem. Então, fora essa questão de prazo, ao analisar hoje um documento que teoricamente foi feito há 10 anos ou há 5 anos a situação mudou. Uma solução seria regionalizar essas análises através dos órgãos ambientais estaduais e nos locais onde tem até mesmo municipais e propor para os proprietários de terra essa possibilidade de regularização da propriedade dele, com o investimento de terceiros daqueles que têm compensação para pagar. Se formos construir uma rodovia nova e, se for preciso cortar árvores, essa rodovia vai poder reflorestar áreas desses produtores rurais com base nas propriedades que estiverem efetivamente regularizadas. Então, ao invés do produtor rural gastar esse dinheiro para esse plantio, em troca da regularização da propriedade dele nos detalhes.

Como ficou o prazo para que o proprietário, possuidor rural, responsável direto pelo imóvel ou inscrever-se o imóvel rural no CAR sem perder o direito de aderir ao PRA?

Eu acho que 2020 já foi o prazo final. Ele era 2018, depois foi 2019 e 2020, se eu não estou enganado. Depois desse encerramento, tinham dois anos para se inscrever no PRA. Onde vai morrer essa conta? Quem que vai regularizar essa propriedade? De onde vem esse dinheiro? Se você faz ali a adesão de algum programa do estado você tem algumas possibilidades, mas a questão social disso que acho que está sendo pouco debatida. A gente vê grandes fazendeiros que têm condições, mas o pequeno produtor tem que tirar esse dinheiro do bolso para fazer essa regularização. Mesmo que ele ganhe a muda, a estrutura no Brasil para se cumprir o PRA em nível nacional é inexistente. Não há sementes e não há muda se você não tem recursos financeiros para o produtor rural fazer isso.

Na maioria dos estados a implementação do PRA não aconteceu. Dos 27 estados, os que editaram a regulamentação do PRA são o Acre, Bahia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia e Pará. A imensa maioria não implementou devidamente o PRA. Como é que você vê isso?

São Paulo já entrou nessa lista de implementação, se não estou enganado. Isso é recente. Você vê que dos estados que implementaram, a grande maioria que está na Amazônia legal. E eles conseguem fazer isso por terem receita vindas de pagamento por serviços ambientais ou algumas coisas nesse sentido. Ou então é porque a grande produção de gado está ali e os próprios fazendeiros precisavam dessa regularização para vender gado ou insumos para o exterior. Muito provavelmente há uma mancha no mapa onde aconteceu essa inclusão do PRA. Quando você pega a região de São Paulo ou a região de Minas Gerais, nós temos um solo muito mais dividido do que nesses outros estados. E nessa divisão de solo, você tem mais pequenos produtores sem condições financeiras de fazer essa adesão. Eu não posso afirmar, mas os estados sabem que colocar o PRA em andamento é um problema para o estado também, com geração de multas e tudo mais.

No Congresso, há vários projetos de lei tramitando no Congresso Nacional querendo modificar o Código Florestal e alguns deles possuem impactos negativos e trazem ainda mais risco à vegetação nativa. Como você vê isso?

Isso vem de uma questão cultural do governo que está à frente. Estamos tendo ataques às terras indígenas. Estamos tendo desmatamento na Amazônia, exploração de minério,etc. Se você tem um Executivo que não segue a linha de proteção ambiental, muito provavelmente não vai deixar de ter ataques frontais à legislação ambiental. E é reflexo da cultura de um governo que menospreza o meio ambiente.

Na COP 26, em Glasgow no ano passado, foram estabelecidas algumas metas de redução de emissões de gases de efeito estufa. Um projeto de lei de 2021 atualizou essas metas para a redução de 43% até 2025 e 50% até 2030, com base nas emissões de 2005 aqui do Brasil. Você acha que a gente tem condições de neutralizar todas as emissões de gases?

Há uma cartilha que é só para inglês ver. Acho extremamente desafiador, e acho que o Brasil tem potencial para fazer isso e até mais. Basta a gente ter um direcionamento da legislação, mas se você entrar hoje no site da Petrobrás há um planejamento até 2030 de expansão da extração de petróleo , isso por si só, para mim, mostra que vai contra tudo isso. Não faz sentido. Por que a Petrobras não está investindo e entrando no mercado de energias renováveis? Ela tem projetos para isso, mas está fazendo isso com muito menos afinco do que procurar poços novos. Nós tivemos leilão ano passado de poços para exploração de petróleo. Se a legislação garantir, por exemplo, que toda árvore suprimida fosse compensada com o plantio de uma floresta adulta, já cumpriria mais da metade do que foi solicitado. Só que nós não temos essa estrutura. Nós não temos ferramentas. São Paulo criou seu ativo verde e está começando a mudar, mas os demais estados não possuem nem parâmetros da floresta para quando ela puder ser abandonada ou não. Há um documento que fala que é preciso plantar uma árvore e cuidar dela por 12 meses ou por 24 meses. Isso é ridículo. Nós temos uma cartilha a ser seguida, e acho que isso deveria descer para as legislações federais e estaduais a fim de que a gente consiga não continuar passando vergonha em nível internacional, quando se trata de meio ambiente.

No Paraná e no interior de São Paulo muitas propriedades que possuem área de preservação permanente têm optado por plantar seringueiras para também torná-la economicamente viável, possibilitando a retirada do látex. Como o senhor vê esse tipo de manejo?

Acho fantástico. Se os órgãos públicos tivessem condição de prestar esse serviço para os produtores rurais, no sentido de implantar SAFs (Sistemas Agroflorestais), às vezes não só a seringueira, porque precisa de um solo, às vezes mais delicado, mas outros SAFS de acordo com as microrregiões. Vamos pôr mamão em uma microrregião e vamos pôr goiaba em outra região. Assim será possível ter uma diversidade. É preciso fazer esse mapeamento onde cada região está mais apta para receber determinado tipo de produto. Quando se fala em APP, não é simplesmente falar que o produtor nunca mais vai poder usar aquela área. Isso não é conscientização. É preciso chamar esse produtor e falar para usar o espaço de uma maneira diferente, com um sistema agroflorestal, onde há a integração da lavoura, da pecuária e da floresta. Isso é educação. É preciso reeducar essa população.

Receba nossas notícias direto no seu celular. Envie também suas fotos para a seção 'A cidade fala'. Adicione o WhatsApp da FOLHA por meio do número (43) 99869-0068 ou pelo link wa.me/message/6WMTNSJARGMLL1.