Após cerca de oito horas de julgamento, o Tribunal do Júri da Comarca de Londrina considerou que o agricultor Donizete Alves Pereira, 54, não teve a intenção de tirar a vida da ex-companheira, Márcia Aparecida dos Santos, 36, há seis anos em Tamarana (Região Metropolitana de Curitiba). Para o corpo de jurados, Pereira cometeu um homicídio culposo e não um feminicídio, conforme defendia denúncia apresentada pelo Ministério Público do Paraná à Justiça. O Néias - Observatório de Feminicídios de Londrina, ressaltou que o julgamento desconsiderou a origem dos fatos que colocaram Márcia Aparecida dos Santos na condição de vítima, característica de um sistema criminal "arcaico, centrado no transgressor e empenhado em passar o recado de que a vítima nem existe ou existiu".

O grupo Néias e a Frente Feminista de Londrina recordaram a perda prematura e violenta da mulher
O grupo Néias e a Frente Feminista de Londrina recordaram a perda prematura e violenta da mulher | Foto: Isaac Fontana/FramePhoto/Folhapress

O caso aconteceu em 1º de maio de 2015. O agricultor foi acusado de ter lançado contra a esposa uma roçadeira, que em razão das lesões, deu entrada no hospital já sem vida. Com a decisão, Pereira obteve a liberdade depois de seis anos em prisão preventiva na Casa de Custódia de Londrina.

A FOLHA acompanhou a movimentação de familiares e integrantes de coletivos feministas do lado de fora do Júri desde o início da manhã desta terça-feira (25).

Do lado de fora do júri, a tese de que a morte teria sido acidental era defendida pelos próprios filhos da vítima e do acusado. "Meu pai estava trabalhando, estávamos numa fase boa, havíamos recebido a terra do Incra e enquanto ele fazia a roçagem, minha mãe tratava das galinhas. Nesse momento, a lâmina bateu em uma pedra, quebrou e atingiu a minha mãe no punho, que acabou por amputar sua mão", narrou o filho mais velho Rafael Henrique dos Santos, 25, que trabalha como entregador. "Estamos aqui para pedir a liberdade do meu pai. São seis anos de angústia e muito sofrimento. Eu era o único maior. Tinha 19 anos na época, perdi minha mãe, meu pai foi preso e meus quatro irmãos tiveram que ir morar com meus tios. Ou seja, perdi todos e eu queria ter a minha família de volta", declarou.

O jovem considerou que o fato de o pai ter respondido por um homicídio anterior pode ter pesado por sua prisão durante todos esses anos. "Foi em 2007, meu pai foi absolvido e ficou provado que um antigo relacionamento da minha mãe invadiu nossa casa com uma faca e em legítima defesa, meu pai acabou por golpeá-lo e ele faleceu", explicou o entregador.

A FOLHA não conseguiu ouvir os familiares do agricultor após a confirmação da decisão, por volta das 17h desta terça.

Durante a manhã, o grupo Néias - Observatório de Feminicídios de Londrina e a Frente Feminista de Londrina recordaram a perda prematura e violenta de uma mulher com rosas e pinceladas de tinta vermelha sobre um tecido branco. Criado há três meses, o observatório é formado por advogadas, professores e ativistas e faz uma referência á violência sofrida por Cidnéia Aparecida Mariano da Costa, 35, uma vítima de tentativa de feminicídio na cidade, que ficou tetraplégica em razão de uma síndrome neurológica ocasionada pela falta de oxigênio.

Além de lamentar o resultado, que "praticamente" tornou o réu inocente, o grupo considerou que aspectos fundamentais para o entendimento desta violência foram completamente desconsiderados. "Alguém que assistiu ao julgamento sabe quem foi Márcia? Qual era o histórico da relação entre a vítima e o réu? Em que contexto aconteceu a morte de Márcia? Alguém viu pelo menos uma foto com o rosto de Márcia? Márcia, a vítima fatal, não teve rosto, nem história. Praticamente inexistiu nesse julgamento. E sobre o roçadeira, objeto que atingiu Márcia mortalmente? Quem assistiu ao julgamento, certamente conheceu melhor a roçadeira do que a própria Márcia", afirmou.

O grupo também lembrou que a Corte Internacional de Direitos Humanos vem difundindo a “vitimologia”, abordagem que visa visibilidade à vítima no sentido de buscar uma melhor compreensão da origem dos fatos. "Isso representaria uma guinada em um sistema criminal antes acomodado em processos voltados tão somente para o réu e sua conduta, colocando a vítima como coadjuvante. Dar visibilidade à vítima é uma condição para a promoção da justiça", explicou

Mais cedo, a integrante do grupo, a advogada Jéssica Hannes, havia sustentado que todo o processo trazia provas de um feminicídio. "No depoimento pela manhã, a enfermeira que atendeu Márcia relata que Dozinete não demonstrou qualquer sentimento e que nem parecia ser um familiar. Foi pedido para que aguardasse, mas ele não permaneceu no hospital", afirmou.

Hannes citou ainda que, de acordo com os autos, a vítima chegou com as pupilas dilatadas ao hospital e sem pulso. No carro onde fora transportada não havia uma gota de sangue, acrescentou. "O laudo de necropsia aponta que primeiro a vítima foi atingida no braço, depois a lâmina ficou presa na parte inguinal da parede abdominal, onde lá, a lâmina se soltou e ficou presa ao corpo de Márcia", detalha.

A advogada revelou que uma testemunha que vive sob proteção dá um depoimento contrário ao de Rafael. "Ele fez de forma proposital, queria atingir Márcia e foi mais de um golpe mesmo", teria dito a testemunha.

Com faixas, cartazes e camisetas com as mãos em prece, os familiares do acusado se mostraram contrários ao movimento feito pelo grupo de mulheres. Eles disseram respeitar o trabalho de defesa de vítimas de violência doméstica, mas sustentaram a inocência do agricultor. "Não tínhamos como pagar um advogado e conseguimos um por meio da igreja para defender meu pai. Já sofremos muito nesses anos e que hoje seja um dia de liberdade para todos nós. Vamos lutar até o último minuto", enfatizou o filho mais velho.