Imagem ilustrativa da imagem Audiências de custódia liberam apenas 1% dos presos
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O instituto da audiência de custódia está em vigor no Brasil há menos de cinco anos. Surgiu da iniciativa do Conselho Nacional de Justiça para possibilitar a avaliação da necessidade e da legalidade da prisão provisória por um juiz em até 24 horas após a constatação do crime. Outra função do instrumento é verificar a ocorrência de eventuais maus-tratos contra o detido e, se possível, evitar o encarceramento, uma vez que o País tem o terceiro maior número de presos do mundo.

A medida representa evolução dos direitos individuais, cujos caminhos para a implementação foram abertos a partir da assinatura pelo Brasil, em 1992, de dois tratados internacionais - Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José, da Costa Rica, e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. A audiência de custódia, no entanto, ainda é amplamente criticada por diversos setores da sociedade que acreditam se tratar de mais um caminho para a impunidade.

Estudo realizado entre os meses de abril e dezembro de 2018 em Londrina e outras 12 cidades brasileiras revela que apenas 1% das pessoas que foram presas em flagrante e passaram por audiências de custódia teve a liberdade irrestrita decretada. A ampla maioria (57%) teve a prisão preventiva decretada e apenas 2%, o relaxamento do flagrante, que ocorre quando há indícios de que a prisão foi ilegal. Dentre os 2.584 casos que foram acompanhados por mais de cem pesquisadores durante as audiências de custódia, 40% tiveram o direito à liberdade provisória acompanhada de alguma medida cautelar.

Coordenado pelo IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), organização de interesse público fundada em 2000, o estudo “O Fim da Liberdade – A urgência de recuperar o sentido e a efetividade das audiências de custódia” revela que a autoridade policial foi a única testemunha do delito em mais da metade dos casos levados à Justiça (55,6%). No caso da acusação de tráfico de drogas, este índice sobe para 90%.

Para o presidente do Instituto, Hugo Leonardo, os resultados mostram o quanto o sistema prisional brasileiro está “inchado” e reforçam e necessidade de que o Brasil pratique um novo olhar, por exemplo, sobre a repressão às drogas, seguindo o caminho de países como Holanda, Uruguai e parte dos Estados Unidos. Para ele, a incompreensão da sociedade sobre o papel da Justiça Criminal colabora para que medidas relacionadas ao aperfeiçoamento do sistema carcerário não sejam pautadas. Um exemplo é com relação à utilização de algemas.

“O Supremo Tribunal Federal inclusive editou uma súmula a respeito porque, infelizmente, nós estamos vivendo uma cultura no Brasil de descumprimento à lei e à Constituição. Não basta estar na Constituição, o STF precisa dizer que essa lei precisa ser aplicada. No caso das algemas é assim. Ainda havendo uma súmula, há uma má compreensão da sua utilização, e há motivação exacerbada e absolutamente desnecessária tornando esta pessoa que aporta no sistema criminal quase que um objeto a ser operado e não alguém sujeito de direito", lamenta.

Também de acordo com o estudo, 85% dos pedidos de prisão preventiva e de medidas cautelares feitos pelo Ministério Público foram deferidos pelos magistrados nos casos analisados, contra apenas 15% no caso dos pedidos protocolados pelas defesas.

"Isso mostra que, num cenário de um ordenamento jurídico como o brasileiro, de que a prisão cautelar é a exceção à regra liberdade, pois a regra constitucional é a liberdade, a prática das decisões proferidas está em dissonância com o texto da Constituição. E isso é muito ruim porque você não tem uma simetria naquilo que é produzido enquanto prática judiciária com aquilo que está previsto na Legislação infraconstitucional e constitucional. Há um desprestígio da Constituição Federal no Brasil no que diz respeito à garantia dos direitos individuais", aponta.

Outro dado que corrobora o que Leonardo considera um "espelhamento" nas decisões é trazido no estudo “Quem Somos – A Magistratura Que Queremos”. De acordo com este relatório, apenas 50,3% dos juízes de primeiro grau concordam com a realização das audiências de custódia, contra 80,9% dos magistrados de segundo grau e 88,2% nas cortes superiores.

“Os tribunais superiores e os próprios tribunais de justiça tendem a olhar para esses casos de uma forma um pouco mais apurada enquanto nas instâncias inferiores, principalmente na primeira, o grande volume de casos faz com que o sistema de Justiça Criminal opere num automatismo muito ruim para a lógica de valorização dos direitos e garantias individuais e combate à tortura”, analisa.

Já com relação ao perfil dos presos, nove em cada dez eram homens, sendo 64% negros contra quase 36% brancos, amarelos ou indígenas. “Lógica natural diante do racismo estrutural brasileiro”, considera o estudo. Já dentre 253 mulheres custodiadas, 50% das que declararam estarem grávidas no momento do delito foram presas mesmo assim.

De acordo com a IDDD, desde que instituída no País, em fevereiro de 2015, até junho de 2017, foram realizadas quase 260 mil audiências de custódia. Para a formulação do estudo foram aplicados formulários com questões sobre a dinâmica das audiências, entrevistas, questionamentos respondidos durantes as audiências sobre prisão em flagrante, dados de boletins de ocorrência, entre outras informações. Além de Londrina, onde foram analisadas 138 audiências, as cidades escolhidas foram Belo Horizonte (MG), Brasília (DF), Feira de Santana (BA), Maceió (AL), Mogi das Cruzes (SP), Olinda (PE), Porto Alegre (RS), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA) e São José dos Campos (SP).

Destes municípios, em apenas cinco era assegurado o direito de uma conversa reservada entre preso e advogado de defesa. Em Londrina, essa privacidade não é garantida, uma vez que as audiências de custódia são realizadas no prédio da Vara de Execuções Penais e apenas em dias úteis.

O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias aponta para 726 mil pessoas presas em 2017, dois anos após a instituição da medida. Já segundo o BNMP (Banco Nacional de Monitoramento de Prisões), em 2018, a população carcerária atingia 813 mil, sendo 41,6% presos provisórios.