Imagem ilustrativa da imagem Associação critica obrigação de volta ao trabalho com laudo psiquiátrico
| Foto: Theo Marques/13/05/2014

Das vezes que o soldado Carlos* passou pela junta médica da Polícia Militar do Paraná, em somente uma foi atendido por um psiquiatra de fato. Teve de se apresentar à junta na capital para avaliação do atestado psiquiátrico. A PM invalidou a prescrição médica, obtida fora da corporação, e Carlos foi obrigado a retornar ao trabalho.

Essa é uma situação que a Apra (Associação de Praças do Paraná) tem buscado enfrentar. A resolução 005 da Corregedoria da PM do Paraná estabelece que caso a junta médica anule o atestado psiquiátrico, o PM é obrigado a voltar ao serviço, caso contrário, pode ser preso por desobediência ou deserção.

Não voltei a trabalhar fardado, mas tive que retornar para o serviço com trabalho interno, na prática administrativa e burocrática da unidade, porém, isso não é comum. Na maioria dos casos o policial fica desenvolvendo atividades até mesmo de faxina, ou de manutenção das instalações, limpeza do local em geral, conserto de instalações elétricas, encanamento, esse tipo de serviço que é determinado”, disse.

As negociações da associação com o comando-geral da PM avançaram, de acordo com o sargento Orélio Fontana, presidente da Apra. “O atual comandante-geral, coronel Péricles, desde que assumiu em janeiro, abriu a negociação para que houvesse possibilidades de alterar a norma. Já está em análise da consultoria jurídica da PM.”

Em Londrina recentemente para entregar viaturas, o comandante-geral da PM, coronel Péricles de Matos, afirmou que 18 psicólogos atendem atualmente o efetivo e oito psiquiatras e 40 psicólogos estão em processo de contratação. “Há preocupação com a saúde psicológica, física e investimentos. Estamos tendo descontingenciamento de verbas para o hospital da polícia, demonstrando na prática os resultados da nossa política e do nosso comando para a saúde do policial”, disse. Ainda na ocasião, prometeu uma resposta à associação, lembrando que todo processo precisa ser submetido a uma análise jurídica.

Enquanto isso, as denúncias continuam. “Do Paraná inteiro temos denúncias de que eles estão apresentando o atestado médico, vão para a junta médica, que não respeita o laudo médico particular de afastamento, e manda o policial ir fazer faxina. E a partir da faxina, o transtorno psiquiátrico fica maior ainda”, lembra.

Só este ano, ao menos 22 mortes em confrontos com policiais militares foram registradas em Londrina. Pela lei de acesso à informação, a reportagem apurou que de 1° de janeiro de 2017 até 31 de dezembro de 2018, 504 pessoas morreram em confrontos com policiais em serviço em todo o Paraná. Fora de serviço, foram 62 mortes. Em Londrina, ao todo, foram 51 mortes nos dois anos de acordo com o Sistema de Ocorrências Letais da PM.

Se o policial militar passa por uma situação de confronto armado, ele tem que ficar afastado por no mínimo oito dias. Fontana acredita que os números cresceram porque a violência está aumentando, mas que a letalidade poderia ser bem menor se houvesse algum acompanhamento tático por uma reciclagem operacional constante. “Isso é importante porque escalas demasiadas com policiamento 24 horas por dia na rua e sem olhar o lado técnico e o lado da saúde causam, sim, falha no sistema. Sobrecarrega o ser humano na questão de saúde, no preparo psicológico e técnico e isso pode acarretar no erro. O estresse causa erro no atendimento e na abordagem. Um policial estressado e com a técnica defasada ao abordar pode, sim, cometer erros graves tanto para ele quanto para uma pessoa que seja abordada.”

O maior agravante, segundo Fontana, é o armamento falho. “Tivemos casos em que o policial atirou na perna do companheiro, de um policial que atirou em um torcedor sem querer e até hoje tem problemas psicológicos. Temos um armamento falho, com apenas 800 armas Glock – que são as melhores – na PM do Paraná.”

Contudo, não foi uma situação específica de confronto o que desencadeou a síndrome do pânico do soldado Carlos. Foram cenários de risco e estresse frequente do trabalho. Ele conta que quando ingressou na corporação não tinha problemas psiquiátricos e nunca havia precisado de acompanhamento psicológico ou psiquiátrico.

O ambiente do PM é rígido. O policial tem que seguir um código de conduta disciplinar rigoroso em que ele está passível de sofrer punições disciplinares por conta de qualquer falha. “Isso com certeza acaba acarretando em um estresse maior para o policial, porque até o próprio código disciplinar que a Polícia Militar do Paraná utiliza ainda é o mesmo que o Exército brasileiro utiliza, foi redigido há muito tempo”, explica Carlos.

Para o soldado, o código, de mais de dez anos, não se aplica totalmente à realidade da PM. “Está defasado já. Seria interessante a PM redigir um código disciplinar próprio para se encaixar melhor na situação do trabalho do policial militar, que apesar de ser militar, é diferente do Exército. São duas situações diferentes. O militar do Exército, por exemplo, o recruta, prestará um serviço de um ano até no máximo sete anos, se ele não for engajado. É uma realidade bem diferente do que acontece na Polícia Militar porque a gente entra para seguir carreira, para se aposentar”. Fontana complementa que outros Estados já trabalham com código distinto do Exército.

PRESSÃO

Por bastante tempo Carlos conta que se sentiu pressionado para esconder os problemas psiquiátricos dele da corporação. “Comecei a ter problemas em 2015 e a fazer tratamento psiquiátrico, mas não falei para ninguém da unidade em que eu trabalhava, até por medo de acabar tendo de ser afastado. Dentro da polícia sempre tem pessoas que enxergam com maus olhos quem acaba tendo que ficar afastado por questões psicológicas.”

Carlos nunca respondeu a processos judiciais. Mas, mesmo assim, em 2015 não quis apresentar atestado. Um ano depois, todos os policiais tiveram de passar por uma avaliação psicológica na corporação. “Já naquela avaliação foi constatada que eu estava com indício de depressão e alguns outros problemas psicológicos, porém nada foi feito na época.”

As avaliações pela Junta Médica não eram confortáveis para os policiais, como relata o soldado. “Não me senti nem um pouco à vontade porque um dos médicos que fizeram essa avaliação do atestado que eu tinha na época era um oficial do quadro médico, formado em medicina, porém militar. Houve também outro médico psiquiatra, civil. Porém os dois foram bem ríspidos, questionaram o que tinha acontecido, por que eu tinha aquele atestado e há quando tempo eu estava fazendo o tratamento, mas com perguntas bem capciosas. Não me senti à vontade. Ao fim da avaliação, eles determinaram que eu deveria voltar para o trabalho.”

Afastado, Carlos aguarda a concessão da exoneração. Mas, segundo ele, o problema da PM não está na esfera local, mas no Estado. “Muitas vezes tem comandantes de unidade, pessoas da polícia que até tentam ajudar, percebem que o policial não está bem, que tem alguma coisa errada, porém como tem coisas que vêm de cima, de outros superiores, acaba saindo da alçada deles. Depende muito mais do Estado do que do superior, ele acaba também ficando de mãos atadas”.

REGULAMENTO RÍGIDO

Integrado à Polícia Militar há cerca de 15 anos, Paulo* recorre contra um processo administrativo que sofreu após episódios, segundo ele, ligados a um transtorno de humor diagnosticado após seu ingresso na corporação.

Ele sustenta que há uma cultura autoritária nos quartéis que cria um ambiente causador de doenças mentais. Paulo explica que já há uma pressão inerente à carreira policial — que fica alerta 24 horas, mesmo quando volta para casa. Para ele, contudo, os policiais são desencorajados a demonstrar fragilidade. “Se externalizar, é visto como frouxo”, conta. “A cultura é que o militar é superior a tudo. Que nunca vai passar por depressão, insônia, sentimentos de perseguição.”

Paulo atribui parte do problema ao fato de a PM do Paraná ainda ser regida pelo RDE (Regulamento Disciplinar do Exército), que prevê punições como prisão mesmo para pequenas infrações — o que favoreceria abusos. O assédio moral, segundo ele, é comum. “E não tem direito trabalhista: se não estiver bom, que peça baixa. Eles não te mandam para a reserva. Você tem que pedir. Quantos policiais, neste meio do caminho, se suicidam, porque não aguentam essa pressão?”, questiona.

Eles utilizam [essa cultura] porque impõe o medo à tropa. Só que isso gera doenças, e isso repercute na sociedade. Vemos inocentes morrendo, situações de confronto fraudulentas, situações envolvendo psicopatia em policiais, atitudes arbitrárias. A doutrina do autoritarismo e a cultura da perversão potencializa isso nos indivíduos”, defende. “A sociedade, às vezes, aplaude esta cultura, mas também se torna vítima disso.”

Para Paulo, o apoio a policiais que sofrem com transtornos mentais é precário. “Havia muitos psicólogos nos batalhões. Hoje, já não tem mais. E o pouco que resta, há uma burocracia lascada para conseguir, porque, segundo eles, o cara ‘se encosta’ no psicólogo. Prefere-se deixar o cara mal, doente — muitas vezes surtando ou cometendo atitudes arbitrárias — do que oferecer tratamento digno”, critica. Ele acusa a PM de reintegrá-lo apesar de possuir um atestado com orientação contrária. “Mesmo sabendo do meu problema psiquiátrico, me deram arma e farda”, diz. “Porque, para o sistema, é inconcebível um militar doente.”

Paulo conta que seu quadro piorou e culminou em episódios de surto e uma tentativa de suicídio, e relata que o agravamento de seu transtorno se tornou incapacitante. Ele diz que viu colegas afetados recorrerem ao uso de drogas e álcool. “O cara às vezes cria uma imagem de forte e por dentro está arrebentado”, diz. “Quantas vezes, no centro terapêutico, ouvi mulheres contando que o marido chorava feito criança em casa?”, conta.

Está todo mundo com o pavio no limite. O cara vai aguentando, aguentando. Não consegue extravasar. Não consegue se tratar, porque é tratado como frouxo. Ou a Coger [Corregedoria Geral da Polícia Militar do Paraná] pressiona: ‘Não aceitamos seu atestado particular. Você não pode fazer isso. É inconcebível, militar não fica doente’. Isso é um risco”, defende. “Está cheio de bombas por aí.”

*Os nomes foram trocados para proteger a identidade dos entrevistados.