Imagine que, de uma hora para outra, você é obrigado a abandonar pão, bolo, bolacha, cerveja e tantas outras comidas e bebidas costumeiras no dia a dia. Essa é a realidade de quem é diagnosticado com a doença celíaca. Apesar do baque inicial, há quem faça do limão uma limonada e veja no diagnóstico de familiares uma forma de ajudar outras pessoas a voltarem a comer o que gostam sem precisar enfrentar fortes dores.

Nesta quinta-feira (16) é celebrado o Dia Mundial de Conscientização sobre a Doença Celíaca, condição autoimune que afeta, principalmente, o intestino. A FOLHA foi atrás de contar a história de empreendedoras que enfrentaram de perto a doença, mas resolveram investir em um negócio que mudaria para melhor a vida de muitos outros celíacos.

Com menos de dois anos de vida, o filho de Carolina Catarin, 41, foi diagnosticado com intolerância ao glúten. Ao chegar em casa, ela abriu a despensa e, no desespero, jogou tudo o que continha a palavra "glúten" no lixo. Com um começo com muitos erros, a família teve que reaprender a viver uma vida sem glúten.

Apaixonada por confeitaria, Catarin sentia falta de doces, principalmente bolo de chocolate repleto de calda e brigadeiro. “Se eu sentia falta, com certeza mais alguém que não podia comer glúten deveria sentir falta também”, conta. Então, em 2021, nasceu o Cozinha da Carol.

Responsável por resgatar memórias afetivas, a comida fortalece a união familiar, como sentar à mesa em uma tarde chuvosa de domingo para comer um bolo de cenoura com cobertura de chocolate feito pela matriarca. Por conta da doença celíaca do filho, a motivação em empreender no ramo da confeitaria sem glúten foi a forma que Catarin encontrou de reviver os sabores dos alimentos. “Foi assim que eu comecei o meu negócio e continuo com o propósito de trazer essa memória afetiva para a mesa de outros londrinenses que também não têm acesso a um restaurante ou cafeteria sem glúten para comer com segurança”, ressalta.

Confeiteira de mão cheia, o cardápio conta com uma infinidade de doces, desde o brigadeiro e o beijinho, que não podem faltar nas festas de aniversário, até os cupcakes, bolos e donuts. “Hoje eu tenho bastante coisa sem glúten que eu consegui incluir no cardápio que eu vou testando. O que eu vejo que eu consigo trazer, em termos de sabor, o mais próximo possível do que a gente está acostumado para, justamente, gerar essa memória afetiva, eu coloco no cardápio”, explica.

Em 2009, Cleonilda de Oliveira, 52, corria de médico em médico atrás de uma resposta para os sintomas respiratórios do filho Lucas, que hoje tem 19 anos. Apesar dos sinais incomuns, ele também foi diagnosticado com a doença celíaca.

Com a restrição ao glúten, a dificuldade inicial foi oferecer opções de lanche para o filho, o que motivou com que ela fizesse alguns cursos para aprender receitas novas, assim como para trocar experiências com outras mães. Aos poucos, foi aprendendo a fazer as misturas de farinhas para criar receitas do zero.

Oliveira seguiu desenvolvendo novas receitas, o que resultava em mesas fartas, com diversas opções de pães e bolos. Durante um café da manhã em família, o filho caçula, que também tem o gene da doença celíaca, disse que ela precisava fazer alguma coisa por outras pessoas com restrição ao glúten e que também gostariam de comer as delícias que ela fazia. Assim, o Ateliê dos Sabores nasceu.

Muito mais do que apenas empreender no ramo dos produtos sem glúten, a vontade é de fazer a diferença na vida de outra pessoa que tem a doença celíaca. “É você poder voltar a se sentir incluído de novo, é poder sentar numa mesa e poder comer um bolo de chocolate”, explica. O gosto pela cozinha veio da avó e da mãe, mas a vontade de empreender foi algo ao acaso, a partir da vontade de ser um porto-seguro para outras pessoas que viviam a mesma realidade. “Eu agradeço a Deus por ele ter me usado para dar a oportunidade de uma criança comer um bolo de aniversário”, afirma.

Afinal, o que é a doença celíaca?

A doença celíaca é uma condição autoimune em que o organismo reage de maneira exacerbada quando há a ingestão do glúten, proteína presente em alimentos como trigo, aveia, centeio, cevada e malte.

Ao ingerir a proteína, o intestino passa por um processo de inflamação, o que causa sintomas como diarreia, constipação, gases e distensão abdominal. Em crianças, a doença celíaca também pode vir acompanhada de atraso no desenvolvimento.

Em alguns casos, segundo o gastroenterologista Pedro Humberto Perin Leite, os sintomas podem ser mais intensos, o que contribui para que o diagnóstico venha de forma mais rápida. Em outros, os sinais da doença são leves e passam despercebidos por décadas.

O diagnóstico é feito através de exames laboratoriais em que é possível identificar anticorpos produzidos pelo organismo em resposta à ingestão do glúten e, principalmente, através da biópsia do duodeno (parte do intestino delgado). “O intestino perde a capacidade de absorção”, aponta.

Dificuldade no diagnóstico

Apesar de o Brasil não ter dados específicos sobre o número de pessoas que convivem com a doença, as estatísticas apontam que entre 1% e 2% da população é celíaca, sendo que a maior parte não sabe que tem a doença. Gastroenterologista e endoscopista, Roberto Menoli explica que a dificuldade no diagnóstico existe pelo fato de que os sintomas da doença celíaca são semelhantes a diversos outros problemas de saúde. “A anemia pode se dar por deficiência nutricional, perda menstrual, sangramentos ocultos, leucemia e também pela doença celíaca”, exemplifica.

Uma vida livre de glúten

No momento, a única solução encontrada para tratar a doença celíaca é cortar o glúten da dieta, o que envolve uma grande mudança na rotina.

Além de não consumir os cereais, os alimentos com e sem glúten não podem ser preparados em um mesmo recipiente, por exemplo, já que a proteína permanece ali mesmo após a lavagem, ocasionando a chamada contaminação cruzada. “Uma molécula de glúten que fica ali vai parar no organismo e vai provocar os sintomas”, ressalta Leite.

Além dos sintomas associados à doença celíaca, o paciente que não segue à risca a dieta pode apresentar deficiência de vitaminas, assim como desenvolver outras doenças, inclusive um tipo de linfoma que tem como ponto de partida as células do intestino. “É significativa a mudança na qualidade de vida quando o paciente celíaco faz o diagnóstico e faz a dieta porque a vida dele se transforma e ele se sente muito melhor”, afirma.

O prazer de comer sem sofrer

O que começou de forma despretensiosa e como uma forma de complementar a renda, hoje se tornou o propósito de vida de Carolina Catarin, que é ajudar outras famílias de celíacos a voltarem a sentir o prazer de comer. “Essa possibilidade de elas se sentirem incluídas em uma festa é muito importante”, afirma, acrescentando que ela tem uma cozinha segura e livre de glúten para que a mágica aconteça.

Por anos convivendo com os sintomas clássicos da doença celíaca e passando por inúmeros médicos, a analista administrativa Aline Borges Sakamoto, 34, só foi diagnosticada, há 11 anos, após a mãe ver um material sobre a doença em uma revista. “Quando eu recebi o diagnóstico, eu fiquei feliz porque eu tinha descoberto o que tinha, só que eu não sabia o tamanho da dimensão que era, o que envolvia a doença celíaca”, afirma.

Como tudo envolve comida, ela conta que a vida social é uma das coisas mais afetadas pela doença. Por isso, perdeu muitos amigos ao longo dos anos. Hoje, admite que o cenário é outro e que há opções variadas para quem enfrenta restrição ao glúten, tanto de locais para ir como de pessoas que vendem os produtos artesanais. “Fácil não é, já chorei muito, já passei muita vontade, mas a gente vai vivendo. E eu falo, tendo saúde é o melhor porque eu já sofri muito”, afirma.

É oito vezes mais caro ser celíaco

Com a vida social atrelada à comida, Ana Cláudia Cendofanti, presidente da Acelpar (Associação dos Celíacos do Paraná), garante que o dia a dia do celíaco não é fácil, ainda mais pelo fato de que o preço dos alimentos sem glúten é muito superior ao dos convencionais. Um pacote de 400 gramas de pão sem glúten custa entre R$ 19 e R$ 25; o tradicional, que tem como base a farinha de trigo, pode ser encontrado em supermercados por R$ 5.

Se a opção é fazer o pão em casa, o preço também não é atrativo: um pacote de um quilo de um mix de farinhas é cerca de 10 vezes mais caro do que a farinha tradicional de trigo. Um pacote de bolacha recheada, com 14 unidades, custa, em média, R$ 3; a versão sem glúten, com oito unidades, passa dos R$ 15. “A vida do celíaco é, no mínimo, oito vezes mais cara do que a vida de um não celíaco”, aponta.

A doença celíaca pode afetar a vida social e, por isso, a fisioterapeuta e empresária Gisele Domingues Brumati, 43, sempre fez questão de que a filha, de 13 anos, participasse das festas e eventos. Diagnosticada oito anos atrás, ela mandava uma marmita com os mesmos alimentos que os colegas comeriam.

Ela mergulhou na cozinha para aprender algumas receitas, A principal dificuldade, entretanto, é o custo dos alimentos, já que a matéria-prima tem um preço muito elevado e, por isso, encontrar pessoas que produzem alimentos seguros é uma forma para que a menina tenha a oportunidade de comer o que tiver vontade.

Compartilhamento

Com poucas e caras opções de alimentos sem glúten lá em 2002, Denir Cardoso, 53, precisou inventar e reinventar para garantir segurança para o filho, Leonardo, que tem 24 anos e convive há mais de 22 com a doença celíaca. Apostando e errando, muita coisa foi para o lixo ao longo dos anos, já que o sabor ou a textura não agradavam.

Mas com o passar do tempo, as coisas foram dando certo e as receitas saindo do papel. Dando um passo mais ousado, em 2008, ela recebeu um pedido de um bolo de aniversário para uma criança que também era celíaca. “Eu não tinha noção de como cobrar, eu não tinha balança, não tinha embalagem, não tinha nada”, relembra, complementando que aceitou a encomenda e fez um bolo de massa branca com recheio de fruta. Aos poucos, ela foi fazendo parcerias com lojas e estudando mais e mais.

O Denir Sem Glúten nasceu de forma despretensiosa e foi ganhando espaço e uma clientela fiel. Para ela, não há dinheiro que pague a alegria de poder dar a oportunidade de uma criança voltar a comer um bolo ou pão. “Tudo o que eu não tive na época que eu descobri a doença do meu filho, eu posso proporcionar para outras pessoas”, afirma, pontuando que é muito gratificante saber que ela faz parte, mesmo que de longe, dos momentos de comemoração e alegria de outras famílias. “Deus me deu um limão e eu soube fazer uma limonada.”