Acidente Vascular Cerebral: silencioso, súbito e prevenível
Em uma corrida contra o tempo, os sinais da doença variam, mas a paralisia de parte do corpo e a perda da fala são os mais comuns
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terça-feira, 03 de setembro de 2024
Em uma corrida contra o tempo, os sinais da doença variam, mas a paralisia de parte do corpo e a perda da fala são os mais comuns
Jéssica Sabbadini - Especial para a Folha
Fabiano conta que foi como desligar, repentinamente, a chave de energia do corpo. Para Márcia, no mesmo minuto em que tudo vai bem, você perde a capacidade de falar e de mexer os braços e as pernas. A mente fica perdida, como se uma fina camada de névoa encobrisse tudo.
Silencioso e súbito, o AVC (Acidente Vascular Cerebral) é, pelo quinto ano consecutivo, a principal causa de morte no país. De acordo com dados divulgados pela Sociedade Brasileira de AVC, mais de 112 mil pessoas morreram no Brasil, em 2023, vítimas da doença. Na prática, isso significa que mais de 300 brasileiros perderam a vida por dia por essa causa.
Apaixonado por esportes de alta intensidade, o advogado londrinense Fabiano Luiz de Oliveira, de 48 anos, era acostumado a levar o corpo até o limite. Em fevereiro de 2018, a caminho da missa, sentiu uma dor no peito, o que considerou comum, já que as dores eram quase que como suas companheiras. Ao chegar em casa, vomitou, apostando que era uma azia qualquer.
Durante os treinos com a bicicleta, começou a perceber o rendimento caindo. Percorrer os costumeiros 70 quilômetros passou a ser exaustivo demais. Com isso, resolveu que era hora de marcar uma consulta com um cardiologista, mas não deu tempo. Às vésperas, no dia 28 de março, Oliveira teve um acidente vascular cerebral isquêmico causado por um coágulo fruto de um infarto.
O advogado explica que o AVC parece uma chave de energia que se desliga no corpo, já que, subitamente, sentiu o lado esquerdo do corpo paralisar. Levado às pressas ao hospital, ele admite que não tinha ideia do que estava acontecendo. Como parte do tratamento inicial envolveu a administração de medicamentos para desfazer o coágulo, ele teve um inchaço no cérebro. Em uma situação crítica, teve grande parte da calota craniana removida para conter o inchaço.
Entre idas e vindas do hospital, primeiro precisou tratar do acidente vascular cerebral para, depois, fazer a angioplastia para colocar um stent na artéria coronária. Por fim, voltou para colocar a prótese craniana cinco meses após o AVC, em agosto. O longo tratamento foi necessário por conta de intercorrências, como uma crise renal em decorrência de uma pneumonia.
O processo de reabilitação, segundo ele, foi rápido, principalmente por conta da atividade física. Para recuperar parte da percepção do lado esquerdo do corpo, contou com a ajuda de um treinador. Apesar disso, ele ainda não consegue identificar determinados objetos apenas ao segurá-los com as mãos, por exemplo. O acidente vascular cerebral também fez com que ele desenvolvesse episódios convulsivos, que precisam ser tratados com medicamentos.
O esporte foi fundamental para a reabilitação de Fabiano Luiz de Oliveira. “O corpo pedia por isso”, explica. Três meses após a cirurgia para colocação da prótese craniana, ele completou a primeira corrida: três quilômetros no Zerão. Depois, vieram várias outras, como a Comrades, a ultramaratona de 90 quilômetros na África do Sul, a maior e mais antiga do mundo, em 2022, completando o desafio em 10 horas e 20 minutos. Em 2027, planeja retornar ao país africano para correr a 100ª edição da prova.
Agora, a meta é completar as “Six Majors”, as seis maratonas mais conhecidas do mundo. A de Chicago ele já correu e a expectativa é de fechar as outras cinco (Nova York, Boston, Londres, Berlim e Tóquio) até 2029.
“Depois que você corre todas essas maratonas, você ganha uma medalha diferenciada”, explica. Para ele, todos os desafios concluídos têm um gosto diferente depois da doença. “Estar ali para mim já é tudo, terminar é uma honra”, ressalta.
Com uma vida ativa e uma rotina repleta de atividades físicas, ele garante que nunca questionou o “porquê”, mas sempre pensou no que precisaria para se adaptar para enfrentar a doença. Hoje, o cuidado com a saúde é redobrado, com visitas frequentes ao cardiologista e neurologista.
O equilíbrio, segundo ele, é a chave, o que envolve suplementação, alimentação e atividade física nas medidas certas. “Se eu vou correr e não estou bem, eu simplesmente paro, não forço o corpo. Antes eu ignorava e ia até onde o corpo respondesse. Depois do AVC, você passa a ver as coisas de uma maneira diferente”, afirma.
UMA DOENÇA EVITÁVEL
O neurologista Leonardo Valente Camargo explica que o acidente vascular cerebral é uma doença vascular do encéfalo, que envolve o cérebro, cerebelo e tronco encefálico, e que pode ser dividida em duas formas: o isquêmico e o hemorrágico.
Representando 80% dos casos, o isquêmico acontece quando um coágulo obstrui um dos vasos arteriais que levam o sangue para o encéfalo. No hemorrágico, mais grave e letal, um vaso se rompe e causa um sangramento.
Em relação aos sintomas, o médico aponta que isso depende da região em que o vaso foi obstruído ou rompido, já que cada parte é responsável por determinadas funções. Os sinais mais comuns, de acordo com ele, são a dificuldade em falar e se expressar, a falta de força ou coordenação nos braços e pernas, a perda de visão, um quadro de vertigem incapacitante, dificuldade para engolir ou sentir os membros superiores e inferiores ou a paralisia facial.
Um sintoma que pode ocorrer nos dois casos, mas que é muito mais comum no hemorrágico, é dor de cabeça muito forte.
Como os sintomas e sinais do AVC são semelhantes aos de outras doenças, Camargo ressalta que o que diferencia é a maneira súbita com que eles aparecem. A partir daí, é essencial procurar imediatamente o serviço de saúde mais próximo. Quando o assunto é acidente vascular cerebral, a corrida é contra o tempo. “Quanto mais tempo eu demoro, maior é a sequela ou menor é a chance de conseguir ajudar o paciente de maneira ampla”, afirma.
O tratamento do paciente que sofreu um AVC varia de acordo com cada caso. No hemorrágico, pode envolver cirurgias e internamento para avaliar a resposta e melhora do prognóstico. Para o isquêmico, é feita a administração de medicamentos para destruir o coágulo ou o cateterismo, em que um cateter é introduzido na artéria, geralmente na região da virilha, e que chega até o cérebro para fazer a retirada do trombo. “O tempo do início do AVC, as condições do paciente, a localização do coágulo e vários outros aspectos estão relacionados com a melhor técnica a ser utilizada”, reforça.
Leonardo Valente Camargo afirma que o AVC ainda é mais comum nos homens, mas que o número de mulheres que desenvolvem a doença também vem crescendo. Além disso, antes, a doença era mais frequente em idosos; agora, vem ocorrendo cada vez mais em jovens, principalmente pela qualidade de vida. Segundo ele, sedentarismo, tabagismo, ingestão de álcool e tratamento incorreto de doenças prévias, como diabetes, hipertensão arterial e colesterol, são os principais fatores de risco.
A demora no diagnóstico de doenças cardiológicas, como no caso de Fabiano Luiz de Oliveira, também pode levar ao acidente vascular cerebral.
O neurologista garante que 90% dos casos de AVC decorrem de fatores evitáveis, tornando-o uma doença considerada como prevenível. A adoção de um estilo de vida equilibrado pode reduzir de maneira extremamente considerável o risco de desenvolver a doença.
PALAVRAS FOGEM DA BOCA
Há pouco mais de um mês, a professora Márcia Maria de Souza Rodrigues, 53, estava junto ao marido, que trabalha com entregas, quando parou de sentir os braços e as pernas, principalmente do lado direito do corpo. “Eu não sentia nada. Foi muito de repente”, conta. Além dos movimentos, ela também não conseguia falar.
Apesar de o avô paterno já ter passado por um quadro semelhante, Rodrigues afirma que foi pega de surpresa ao saber que estava passando por um acidente vascular cerebral. A professora ficou, ao todo, 15 dias internada em meio aos exames e medicações, além de testes motores e de consciência. Do tipo isquêmico, geralmente com melhor prognóstico, ela afirma que não apresenta sequelas graves e que passa por acompanhamento fisioterápico constante.
Afastada do trabalho, Rodrigues conta que o processo de recuperação é muito difícil e que, no início, se sentia muito fraca. Além disso, ela vem treinando a fala, pronunciando as palavras de forma correta. Mesmo assim, em alguns momentos, as palavras “fogem” da cabeça.
REABILITAÇÃO FÍSICA E PSICOLÓGICA
A fisioterapeuta Camila Bonomo explica que a reabilitação do paciente que sofreu um AVC deve ser iniciada de imediato, sendo um tratamento multiprofissional, que envolve enfermeiros, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, nutricionistas e fisioterapeutas.
Segundo ela, o processo de reabilitação é individual e depende de fatores como a gravidade da doença e as regiões afetadas, além da motivação do paciente.
Ela aponta que o AVC pode ocorrer em diversas áreas do cérebro, sendo que cada uma é responsável por uma função específica. Por isso, a reabilitação é individualizada para cada paciente, já que alguns apresentam dificuldade no equilíbrio e outros ao movimentar mãos e braços, por exemplo. “Há os que perdem a capacidade da fala e necessitam reaprender nomes de objetos”, complementa.
Por ser um evento súbito e, em muitos casos, deixar sequelas graves por tempo indeterminado, por vezes os próprios familiares precisam parar de trabalhar para cuidar do paciente. Essa situação pode gerar perda de renda, assim como um acréscimo de responsabilidade diante do cuidador, já que muitas vezes o paciente perde a capacidade de autonomia para realizar tarefas simples, como fazer a higiene pessoal. De acordo com a fisioterapeuta, todas essas mudanças exigem um acompanhamento psicológico para toda a família.
Bonomo aponta que o retorno à vida social também é um fator fundamental na recuperação. “Muitas vezes, a pessoa que teve AVC não quer sair de casa por estar com vergonha de suas limitações, o que causa um impacto grande a médio e longo prazo, como sinais de depressão. O mesmo vale para o cuidador, que fica o tempo todo com o paciente e não tem um momento de lazer, o que pode levar ao cansaço extremo e à depressão”, detalha.