A brasilidade a serviço da ciência
Mestiçagem vai ajudar pesquisas globais para novos medicamentos e tratamentos mais eficazes de doenças
PUBLICAÇÃO
sábado, 22 de fevereiro de 2025
Mestiçagem vai ajudar pesquisas globais para novos medicamentos e tratamentos mais eficazes de doenças
Lúcio Flávio Moura - Especial para a FOLHA
Uma das poucas cientistas do Brasil com prestígio e notoriedade suficientes para lotar um auditório em qualquer cidade importante do País, Lygia da Veiga Pereira - uma carioca que ostenta há mais de 30 anos o título de doutora pela City University of New York e figura recorrente em listas de brasileiros mais influentes no mundo - está percorrendo o mundo acadêmico para prestar contas dos avanços no projeto “DNA do Brasil”, mutirão científico presidido pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo que está sequenciando o genoma de milhares de brasileiros. “O que nos move é a curiosidade em entender como nós funcionamos, como são as respostas que a natureza vai criando para cada uma das diferentes condições em que o ser humano habita. O Brasil terá uma contribuição significativa neste entendimento porque nossa população é muito interessante”, defende.
A professora esbanjou carisma e capacidade de comunicação na palestra inaugural da 13ª edição do Congresso Paranaense de Ciências Biomédicas (CPCB), realizado na semana passada no campus da UEL.
Até mesmo os leigos da plateia conseguiram compreender com clareza a importância deste trabalho longo e complexo, que entra no sexto ano de atividade com poucas respostas e muitas perguntas.
Até agora foram sequenciados amostras de sangue de 3 mil brasileiros, aproveitando material coletado por grupos de pesquisadores de diversas universidades brasileiras. “Começamos alguns meses atrás a segunda fase, com mais seis mil genomas e o objetivo é alcançar 15 mil até o fim deste estudo”, informou Lygia à reportagem em entrevista após o evento.
Em 2025, devem ocorrer dois passos importantes na investigação. A primeira é a publicação de um artigo com a descrição dos primeiros resultados e a segunda é a conclusão da atual etapa de sequenciamento, que incorpora mais 6 mil amostras.
O projeto é financiado por um consórcio com recursos do orçamento federal, da DASA (uma grande empresa de medicina de diagnóstico) e do Google, que oferece uma subvenção para o armazenamento dos dados da pesquisa em nuvem.
Nos 45 minutos da palestra, Lygia traduziu em linguagem simples alguns pontos que devem estar escritos em detalhe no artigo científico que vai ganhar o mundo.
Para entender melhor a importância da iniciativa para a ciência brasileira, a cientista explicou em que contexto a ideia surgiu e como ela se insere nos esforços mundiais sobre o tema.
Lygia lembrou que as pesquisas com foco em mapeamento de genomas estão concentradas no Hemisfério Norte, com super representação da população branca e asiática. E que a contribuição do Brasil para as pesquisas globais está justamente no fato de que os genomas têm predominância mestiça, com um nível de mistura de etnias singular, provavelmente a mais diversa do mundo.
A plateia aprendeu que no genoma de cada um de nós existem fragmentos de populações indígenas e africanas, dos primeiros colonizadores - portugueses, franceses e holandeses, além dos fluxos migratórios dos século XIX e XX - italianos, alemães, eslavos, japoneses, árabes - que contribuíram para formar o grande caldeirão humano que povoa o País.
Código regente
As proteínas formam as células, as células formam os tecidos, os tecidos formam os órgãos e os órgãos formam os sistemas responsáveis por organizar a vida no corpo humano. Todo este processo tem um regente, o código genético, que é quase completamente idêntico em toda a população, com apenas 0,1% de características individuais. “O genoma é uma grande receita que a natureza segue para a formação de um ser vivo”, resume.
As características individuais vão muito além da aparência e o projeto científico tem o objetivo de revelar as predisposições para doenças a partir do mapeamento em massa dos DNAs. “Este é o desafio do século XXI”, lembra a palestrante. “Descobrir como essas variações influenciam no desenvolvimento ou na baixa incidência de doenças. Estas descobertas vão abastecer a medicina de precisão, ou seja, teremos mais eficácia nos tratamentos e uma redução nos custos do sistema de saúde”, explica.

A pesquisadora dá um exemplo. “Vamos imaginar um caso de câncer de mama. O normal é tratarmos todas as pacientes da mesma forma. Mas na medicina de precisão isso muda porque já é possível partir de uma avaliação de risco muito evidente graças aos dados genômicos”, compara. “A pessoa sequencia o gene BRCA1, um gene importante em se tratando de câncer de mama, e o geneticista encontra uma variação. E aí ele vai se questionar: será que essa variação causa doença ou não? Uma maneira de se ver isso é saber se aquela variação é frequente na população. Se for frequente, provavelmente não causa doença. Se for uma variante muito rara, acende uma luz amarela”.
A ciência já sabe que os dados genômicos dobram o sucesso nas pesquisas que buscam desenvolver novos medicamentos. E como a maior parte dos estudos é feito em população com uma alta predominância de brancos ou de asiáticos, os bancos de genomas ainda se ressentem de uma falta de genomas mais diversos, o que leva a uma desigualdade no desenvolvimento de novas terapias em países como o Brasil. “Vamos ter que avançar e buscar alcançar, por exemplo, o mapeamento de 500 mil DNAs, que é um número que o Reino Unido já dispõem com uma população três vezes menor”.
Descobertas curiosas
O artigo da primeira fase do mapeamento deve explorar alguns temas secundários, mas que pode ter impacto na própria forma como o brasileiro se enxerga e como interpreta sua história. Lygia lembra que até agora foi observada pouquíssima incidência de cromossomos Y - uma herança dos pais - de ancestralidade indígena. A grande maioria é de origem europeia, o que, segundo ela, é um traço deixado pelo nosso modelo de colonização. No caso do DNA mitocondrial - que o indivíduo herda da mãe - há uma distribuição bastante equilibrada, com um terço europeu, outro africano e outro indígena. Ela chama isso de “cicatriz” de um povo dominante sobre o povo dominado.
Há ainda duas revelações fascinantes no estudo. As populações que foram escravizadas por séculos no Brasil e que saíram de diferentes pontos da África, de etnias distintas, geraram aqui misturas inéditas, que não são encontradas no continente de origem. Outra descoberta impactante é que nossa carga genética tem a presença de povos originários que foram extintos durante o processo de colonização. Nos dois casos, o estudo pode ser uma nova pista para entender os fluxos migratórios praticamente sem registro que marcaram a vida brasileira no período colonial.

