Equipamentos para leitos de UTI adquiridos em uma loja de vinhos no Norte do País. Respiradores fornecidos por uma casa de massagens na região Sul. Superfaturamento na compra de materiais que nunca foram entregues. Essas são apenas algumas suspeitas de fraude em investigação após os primeiros casos do novo coronavírus no Brasil.

Imagem ilustrativa da imagem Pandemia acende alerta para desvios de recursos
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Para reforçar a fiscalização nesse período, o Instituto Não Aceito Corrupção criou o canal de denúncias "Corruptovírus". A plataforma tem o apoio de 25 entidades e organizações, entre elas, a Transparência Brasil e a Contas Abertas.

Em entrevista à FOLHA, o procurador de Justiça de São Paulo e presidente do instituto, Roberto Livianu, destaca a importância do combate à corrupção e da conscientização sobre o tema. O instituto é apartidário e realiza pesquisas e campanhas para estimular melhorias nas políticas públicas do País.

Como funciona a ferramenta para denúncias criada pelo instituto e de que forma a população pode contribuir?

Todos os dramas, todas as mortes, todos os problemas de saúde que estão nos acometendo nesse período tão dramático da nossa vida não arrefeceram os objetivos criminosos daqueles que praticam a corrupção. Infelizmente, as notícias mostram que o desvio de verba, a falsificação de respiradores e os superfaturamentos acontecem de norte a sul. Nós, como instituto, como integrantes do terceiro setor, entendemos que é importante disponibilizar para a sociedade uma porta de acesso para que denunciem eventuais casos de corrupção. Nós procuramos fazer isso da maneira mais simples possível. O acesso a essa ferramenta é muito fácil. Inclusive a denúncia pode ser feita de forma anônima.

Para ter acesso ao 'Corruptovírus', que é o nome que nós demos a essa ferramenta, basta acessar a página do Instituto Não Aceito Corrupção (www.naoaceitocorrupcao.org.br). Essa ferramenta está hospedada dentro do nosso site. Ali as pessoas encontrarão informações que nós consideramos importantes, úteis e práticas para o dia a dia do cidadão em relação à pandemia e ao aumento dos riscos em relação à corrupção.

Decretos de emergência e de calamidade pública acendem um alerta na questão de desvio de recursos. Como reforçar a fiscalização nesse período?

Temos regras estabelecidas nas leis para garantir a competitividade nas contratações públicas. Isso ocorre para que não tenhamos nessas contratações nenhum tipo de jogo de cartas marcadas, para não permitirmos que um indivíduo que fez uma campanha privilegie um amigo, um aliado e assim faça um acerto de contas. Em virtude do decreto de calamidade pública, essas regras foram afrouxadas. Isso existe para que esse procedimento de licitação seja mais rápido. Você não tem a publicação dos editais, não tem essa amplitude de possibilidades de competição. O administrador público faz a consulta de preços e colhe as propostas. Portanto, isso aumenta o risco de práticas corruptas porque, quando ele colhe essas propostas, ele está direcionando a possibilidade de quem vai oferecer essas propostas. De uma certa maneira, ele pode direcionar essa coleta. O decreto é assinado para que se acelere esses procedimentos, para que a obtenção do produto, por exemplo, aventais e itens para a área da saúde seja de forma mais rápida, mais célere, para que possam ser poupadas vidas.

O problema é que em nome disso, com esse argumento, muitas vezes essas situações são fraudadas. Tivemos situações em que foram comprados respiradores no Amazonas de uma loja que vende vinhos. No Rio de Janeiro tivemos a notícia de que respiradores foram comprados por dez vezes o valor de mercado. Em Santa Catarina, o CNPJ do fornecedor dos respiradores era de uma casa de massagem dedicada a prazeres. Portanto, toda a atenção é necessária para coibir essas práticas e puni-las de maneira exemplar.

Qual a sua percepção, como presidente do instituto, em relação à visão da sociedade sobre o conceito de corrupção?

De um modo geral, eu tenho a percepção de que a corrupção preocupa cada vez mais a população. Ela é um dos vetores importantes considerados na tomada de decisão em relação ao momento das escolhas políticas nas eleições. Mas essa consideração que eu faço não pode ser tomada como algo absoluto. Não são todas as pessoas que pensam dessa maneira. Se de uma forma você teve uma certa dose de renovação política nas últimas eleições, houve fatias em que não tivemos renovação, com pessoas que enfrentam processos por corrupção que, apesar de não terem condenação confirmada no tribunal como exige a Lei da Ficha Limpa, foram votadas para que continuem sendo os representantes da sociedade.

Mas eu faço aqui uma outra observação. Existe um grande número de pessoas que se posiciona contrariamente à corrupção e vai às ruas participar de manifestações, mas isso se dá só quando falamos da corrupção dos outros. Se você sair agora às ruas de Londrina e perguntar aos cidadãos: 'Você é a favor ou contra a corrupção?'. Eu tenho certeza que a quase totalidade responderá que é contra.

Agora se você perguntar a essas mesmas pessoas: 'Eu soube que a Prefeitura de Londrina tem um cargo com um salário de R$ 30 mil, é uma molezinha, meio que um cargo fantasma, tem um esquema de rachadinha, você aceita este cargo?'. Muitas delas aceitariam. Ou seja, ela é contra a corrupção dos outros. No momento em que ela tem a oportunidade de se tornar beneficiária da corrupção, ela não é tão contrária assim. Então isso é muito complicado porque você vê as pessoas sendo condescendentes quando elas têm oportunidade de se beneficiarem de situações ilícitas. Isso realmente é um problema a ser resolvido.

Como as pessoas agem quando ninguém está olhando? Quantas pessoas têm oportunidades de obter vantagens indevidas, de fraudar, de roubar, de desviar, mas se mantêm honestas e íntegras? Esse é o percentual que para nós é importante. Quando nós atingirmos um patamar importante, significativo de indivíduos que, mesmo nessas circunstâncias, não transgridem a lei, nós teremos evoluído.

A demora na apuração dos fatos e na aplicação de uma punição traz prejuízos para a conscientização sobre esse tema?

Esse não é o único fator. Da mesma maneira, não há bala de prata no enfrentamento à corrupção porque você não tem uma única fórmula milagrosa de combate. Não há um único fator que leva as pessoas a agirem dessa maneira. A demora é um fator. A falta de efetividade é outro fator. Mas o brasileiro que transgride a lei aqui, quando ele vai para os Estados Unidos, ele não joga papel na rua porque sabe que ali, se ele transgredir, sofrerá punições rigorosíssimas. Então, a pessoa é a mesma, a mentalidade é a mesma, só que ele percebe que aqui você tem uma certa dificuldade de fazer com que a lei seja cumprida.

Temos que fazer ajustes nas leis. Precisamos fazer com que as pessoas sejam submetidas ao cumprimento da lei após condenação em segundo grau. O financiamento da política precisa ter transparência e o caixa 2 eleitoral precisa ser rigorosamente punido. As coisas aqui correm soltas e o caixa 2 não é reprimido. Portanto, ele é naturalizado. E aí você paga um preço lá na frente altíssimo porque a competição pelo voto é desleal.

Precisamos fazer reforma política eleitoral. Os partidos políticos no Brasil funcionam de uma maneira absolutamente irregular, clandestina. A estrutura partidária não tem transparência. Os partidos têm donos no Brasil. Não há democracia intrapartidária. Eles não prestam contas, não se submetem à lei. Como você vai ter seriedade, como as coisas vão funcionar corretamente, se os partidos políticos não se submetem à lei? E, quando existe a lei, de um dia para o outro, na calada da noite, eles mudam a lei para não cumpri-la.

É necessário que as coisas sejam corrigidas, mas, antes disso, é necessário que haja um pacto para que as coisas caminhem à frente para o País. Como você constrói esse pacto? Você tem que criar as condições para isso. Algo extremamente importante e que não se dá o devido valor é a escolha dos presidentes do Legislativo, por exemplo. Essa é uma escolha que acontece à margem da sociedade. Eles dialogam apenas com seus pares. As pautas na disputa são pautas corporativistas e o poder que detém o presidente da Câmara e o presidente do Senado é um poder gigantesco. A sociedade precisa participar disso, pressionar e contribuir para que as escolhas desses presidentes, para que sejam escolhas de pessoas alinhadas com os interesses da sociedade.

Como estão as estruturas das instituições para combater essas práticas ilícitas?

As instituições têm a sua estrutura, mas precisam ter uma vigilância permanente. Agora, por exemplo, há uma grande expectativa nacional em relação a investigação que é presidida pelo ministro Celso de Mello que diz respeito aos fatos envolvendo o presidente da República. Por que essa expectativa? Porque aquele que detém o poder de oferecer denúncia contra ele, o fiscal maior da nação, que é o procurador-geral da República, foi escolhido pelo próprio fiscalizado. E o fiscalizado emite gestos de afago e amizade permanentes. Então o Ministério Público tem condições de trabalho, tem estrutura, mas ele tem seus problemas também porque no momento em que o comando da instituição é escolhido da forma como é, isso gera um problema para a sociedade. Precisamos caminhar na direção de uma efetiva independência das instituições para imunizá-las totalmente da interferência.

Em outra linha, o Instituto Não Aceito Corrupção vem trabalhando no projeto Controla Brasil a partir de uma percepção de que há fragilidade nas estruturas de controle interno dos municípios. Fizemos um levantamento nas cidades brasileiras a partir de 20 mil habitantes e detectamos que cerca de 20% apenas dos municípios têm as macrofunções de controle organizadas. Eu me refiro a auditorias, controladorias e ouvidorias. Quando você tem o controle interno sistematizado, você previne a corrupção de maneira muito mais eficaz. Eu penso que esta é uma agenda importante para as eleições 2020. Exigir dos prefeitos que avancem nessa estruturação de controle interno.