Lygia Fagundes Telles não se preocupa em definir o limite que separa a realidade da ficção - em seus escritos, fatos verdadeiros são recontados ao sabor da imaginação, resultando em textos que almejam a perfeição estilística ao mesmo tempo em que obriga o leitor a pensar e repensar. É o que se pode observar em ''Conspiração de Nuvens'' (136 páginas, R$ 22), livro inédito que a editora Rocco lançou ontem e que será sua principal novidade na Bienal do Livro do Rio, a partir do dia 13.
São 19 histórias enxutas, que trazem ficções novas, reminiscências da infância, relatos de viagens, crônicas sobre a cidade de São Paulo e perfis de intelectuais brasileiros com quem conviveu. Algo como uma paleta de cores, em que os tons mais suaves são representados pelas lembranças de infância como em ''A Quermesse'', enquanto os mais sombrios trazem recordações dos momentos de perda e de opressão, como no conto que dá título ao livro.
Ali, Lygia relembra a célebre manifestação de intelectuais que, em 1976, cansados da censura imposta pelo regime militar, elaboram um documento com mil assinaturas pedindo liberdade de expressão. Basta a primeira página do manifesto para se medir sua importância: figuram ali as assinaturas de intelectuais como Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza, Osman Lins, Sergio Buarque de Holanda, Raduan Nassar, Ricardo Ramos, Luis Martins, entre outros.
''Formamos uma comissão e fomos entregar o manifesto no Ministério da Justiça, em Brasília'', lembra-se Lygia. ''Durante a viagem de avião, no entanto, fiquei alarmada quando descobri a formação de nuvens sombrias. ''Formou-se uma conspiração de nuvens'', eu disse ao historiador Hélio Silva que, com sua fina ironia, comentou, depois de observar o temporal que se armava: ''Se não cairmos agora, seremos presos na chegada.''
O esquecimento com tão importante evento histórico incentivou Lygia a relembrá-lo, tornando-o o primeiro conto do livro a ser escrito. ''Os jovens hoje sabem um pouco da dificuldade daquela época por meio de depoimentos de pessoas que não puderam ficar aqui, como o Caetano Veloso e o Gilberto Gil'', observa. ''Mas eu e diversos intelectuais participamos fortemente da resistência, especialmente por meio desse manifesto.''
Esse conto é um dos raros exemplos de fidelidade ao fato histórico, pois, na literatura de Lygia, a realidade está envolta na sedução do imaginário e da fantasia. Tranquilamente, ela se justifica como uma fiel discípula de Aristóteles. ''Para ele, o criador é o memorialista, aquele que retrata os momentos como realmente são, enquanto o ficcionista se preocupa mais com o que poderia ter acontecido. E é aí que me encaixo, pois entra a paixão.''
O amor pela escrita, aliás, foi redentor. Depois que perdeu seu único filho, o cineasta Goffredo Telles Neto, a escritora viveu momentos de depressão. ''Eu estava muito triste, angustiada, sem interesse por objetos ou por pessoas'', relembra. ''Tenho meus santos, mas a religião me era insuficiente, ao mesmo tempo em que me afastei dos amigos. Minha salvação foi escrever, foi a única coisa que me seduziu.''
Iniciar o trabalho de ''Conspiração de Nuvens'' permitiu-lhe, portanto, reencontrar a esperança. Lygia preocupou-se também em dar um exemplo de perseverança às duas netas, Lúcia e Margarida, que a ajudaram no trabalho. ''Foi como encontrar uma bóia em meio a uma tempestade; a vontade de lutar voltou novamente.''
Como Octavio Paz, que dizia não ter uma biografia mas uma obra, Lygia começou a reviver o passado, sempre acreditando no ensinamento de Santo Agostinho (outro de seus inspiradores), para quem a residência da alma é a memória.
Assim, sem se preocupar unicamente com a rigidez histórica dos fatos, a escritora tornou-se fiel a uma realidade mutável, em que colocou novas intenções de vida. Na redenção para uma nova fase de sua existência, ela se recordou de pessoas que lhe deixaram carinhos perenes, como o escritor Erico Verissimo ou seu segundo marido, o crítico e ficcionista Paulo Emílio Salles Gomes, cujos 30 anos de morte serão lembrados no dia 9 de setembro.
Com o auxílio do também escritor Suênio Campos de Lucena, que se tornou um valoroso amigo, Lygia organizou o livro que, como já é marcante em sua obra, também tem a escrita como testemunho de vida. Aos poucos, ela retomou o prazer.
Assuntos que lhe são caros voltaram ao seu cotidiano. O ato de organizar o pensamento, por exemplo, inspirou algumas histórias de ''Conspiração de Nuvens'', em que Lygia comenta como continua válida a estrutura de um conto formulada pelo crítico Antonio Candido.
''Conspiração de Nuvens'' fecha uma trilogia, formada com os livros ''Invenção e Memória'' (2000) e ''Durante Aquele Estranho Chá'' (2002). ''Quando lembra, Lygia sempre mantém um fio tênue entre o compromisso com a verdade e a lembrança, em geral, a infância, o paraíso perdido das pequenas cidades do interior retomado e recriado por ela'', observa Suênio Campos de Lucena.
O que torna esses novos contos tão especiais, porém, é a renovada busca da escritora que, a partir de suas personagens, encontrou respostas que dão sentido à vida, permitindo-lhe descobrir a melhor forma de novamente interagir com o mundo externo.