“A Comarca de Curitiba, na Província de São Paulo, fica elevada à categoria de Província com a denominação de Província do Paraná”. Assim começa o livro “Terra da Gente”, do jornalista Evandro Cesar Fadel, 65, pé-vermelho de Ibaiti (Norte Pioneiro) intimamente ligado aos terreiros de café e aos chiqueiros e galinheiros desde a infância, como ele mesmo conta na obra.

Fadel é jornalista, formado em 1987 pela Universidade Estadual de Londrina. Trabalhou na Folha de Londrina e no jornal O Estado de S. Paulo entre os anos de 1986 a 2012, quando foi convidado a trabalhar em um cargo comissionado na Secretaria de Administração do Estado. Desde 2019 atua na Seab (Secretaria da Agricultura e do Abastecimento do Estado do Paraná).

O trecho que dá início ao livro é da certidão de nascimento do Paraná, lei aprovada pelo Senado em agosto de 1853 e sancionada por Dom Pedro II no Palácio Imperial. A obra se desdobra a partir das observações e relatos feitos pelos governantes sobre as terras do Paraná em 170 anos. E começa por Zacarias de Góes e Vasconcelos, nomeado pelo imperador como primeiro presidente da província, como eram intitulados à época.

O recorte documental de Fadel se baseia nos relatórios que os governantes do Estado enviam à Assembleia Legislativa, anualmente e por obrigação constitucional, com informações sobre os atos administrativos que influenciaram as ações do governo no ano anterior. Nestes relatórios, o escritor encontrou um riquíssimo material que retrata os caminhos da agropecuária paranaense de 1853 a 2023.

Evandro, a ideia inicial era escrever sobre a conquista do título de Livre da Febre Aftosa Sem Vacinação pelo Estado do Paraná, certo?

Em 2022, o Estado do Mato Grosso não tinha erradicado ainda a febre aftosa, mas eles já tinham um livro sobre a erradicação que aconteceu agora [em maio de 2025]. E aí, quando me caiu na mão esse livro, eu falei: mas eles, que não são livres, já tem um livro, e nós [no Paraná], que realmente somos livres, não temos a história ainda? E todo mundo falava de uma história de 50 anos de luta. Aí eu decidi escrever um livro sobre isso.

E o que te levou a mudar esse tema tão específico para uma obra mais abrangente, de 170 anos de história?

Quando eu comecei a fazer as pesquisas, alguém me falou que em 2024 seriam 80 anos da Seab. Esse formato de secretaria, essa última grande reforma, foi em 1944. Aí comecei a fazer pesquisa e vi que antes disso, em 1912, um dos grandes auges da agropecuária paranaense, já havia outras formas de secretaria. Então não me bastava contar apenas a história da secretaria, mas contar a história da agropecuária paranaense.

O sr. optou por fazer um recorte pela ótica dos gestores públicos. Por que escolheu esse caminho em vez de, por exemplo, focar diretamente nos agricultores ou nas tecnologias?

O arquivo público é vinculado à Secretaria da Administração [onde Evandro trabalhou]. Eu sabia disso lá em 2012, a riqueza que tem dentro do arquivo público. Então decidi contar a história a partir dos documentos que estavam no arquivo. Porque desde que o Paraná se libertou da comarca de São Paulo, todos os governantes têm que mandar um relatório do que aconteceu no ano anterior, ano após ano, na primeira sessão da Assembleia Legislativa.

Então eu tinha as fontes primárias documentais para contar essa história. Até porque, até mais ou menos 1930, era unicamente o Estado que dava o direcionamento político das coisas. Não só da agricultura, mas de tudo. Foi mais ou menos em 1925, com a primeira cooperativa, que o Estado começou a dividir um pouco esse poder e responder aos pedidos e reivindicações dos produtores com programas e projetos.

Ou seja, apesar de ser um recorte pela ótica dos gestores, é um recorte mais amplo, certo?

É um recorte mais amplo, certamente. Esse livro é a “Terra da Gente”. Eu já tenho na minha cabeça talvez um livro chamado “A gente da Terra”. E aí sim, aí eu faria um caminho inverso. O foco no agricultor, na agricultura, nas empresas agropecuárias, naquilo que veio depois. Se vai sair, não sei.

Durante o prefácio, o sr. reconhece que não é um historiador, mas um jornalista contando uma história. Como que essa postura influenciou no tom e no formato do livro?

O historiador interpreta a história. Eu, como jornalista, me satisfaço em contar os fatos, dando a liberdade para o leitor pensar sobre aqueles fatos. Eu tenho o meu pensamento, mas procuro não colocá-lo. Esse é o princípio do jornalismo. E no livro eu procurei ser um jornalista, não um historiador.

O que te chamou mais atenção nas mensagens anuais dos governadores? Algum deles te surpreendeu pelo modo como tratava o tema da agropecuária?

Os presidentes da província [no período do Brasil Império] são detalhistas nas coisas. Então, os melhores são eles. Tem alguns ali que tem 400 páginas no relatório. O Estado era pequeno. Quando começou, tinha cerca de 60 mil habitantes. Então, ele conhecia fato por fato. Um fato policial, por exemplo, ele detalhava. É muito rico por causa disso.

Mais recentemente ficou uma coisa muito burocrática e até ficou difícil de escrever. Tem um texto inicial que é o governador que assina e depois são relatórios burocráticos que cada secretaria faz e incorpora naquele documento. Não é um descaso do governante de agora. É natural. O Estado cresceu, as secretarias cresceram.

Em algum momento da apuração, alguma descoberta ou dado histórico te surpreendeu? Algo que contraria o senso comum sobre a agropecuária no Paraná?

Não. Que contraria não. Foi sempre um crescimento. Desde o início, por exemplo, houve uma grande preocupação com a colonização. Havia uma obsessão dos presidentes da província em colocar o trigo. Porque eles conheciam a força do trigo internacionalmente. E afirmam que o Paraná poderia ser o maior produtor de trigo da época.

Outra coisa é a questão das estradas. Até hoje uma questão que o Estado briga para tentar fazer são as estradas rurais, para levar a produção. Isso há 170 anos já era uma preocupação.

O sr. menciona que faltaram 19 anos dentro dos 170. Teve um período específico ou eles são espalhados?

Basicamente, é do período Getúlio Vargas. Em que os relatórios não eram mandados para a Assembleia Legislativa, mas diretamente para o Presidente da República. O Manoel Ribas [interventor e governador do Paraná de 1932 a 1945] que cumpriu basicamente todo esse período do Getúlio Vargas deixou muitos inscritos. Mas ele escrevia muita coisa de forma particular e os relatórios, basicamente, iam para o Presidente.

E isso não te deixou inseguro?

Não. Pode ter faltado alguma coisa, mas eu não creio que tenha deixado menos rica essa história da agropecuária paranaense por falta desses 19 anos.

O sr. entrevistou 16 ex-secretários de Agricultura. Alguma fala deles te marcou especialmente? Houve algum relato mais emblemático?

A primeira pessoa emblemática, para mim, foi Ernesto Luiz de Oliveira, nomeado como secretário de agricultura em 1912, quando foi criada pela primeira vez uma secretaria. Eu não consegui entrevistar porque ele não existe mais. Esse cara, para mim, foi estupendo. Era muito polêmico, mas era altamente preparado.

Foi o primeiro que quis fazer escolas agrícolas dentro do Estado. Ele queria a capacitação de todos os técnicos que trabalhavam e a modernização da agricultura, mas não conseguiu fazer isso. Então ele começou a editar uma revista, que foi a primeira revista paranaense de orientações técnicas, chamada Casa do Lavrador.

Agora, você me perguntou dos que eu entrevistei. Paulo Pimentel é o mais antigo que entrevistei. Foi secretário em 1964 e se tornou governador com 37 anos. Esse foi emblemático porque percebeu uma dificuldade que o Estado tinha, na época, que era a pecuária.

Nós já éramos bons naquela época na agricultura, principalmente no café. Mas ele percebeu que nós éramos péssimos em pecuária. Ele conseguiu reformular a pecuária paranaense. Eu achei isso fantástico.

O sr. falou da secretaria que surgiu em 1912 e mencionou, com essas palavras, um “grande auge”. Dá para dizer que esse período foi a virada de chave para a transformação da agropecuária no Paraná?

Não, não, não. A agricultura paranaense sempre foi um crescente. Às vezes, no Estado, houve rupturas, e grandes rupturas políticas. Mas eu não observei nenhuma rompimento absoluto em termos de agropecuária.

Isso mostra que, mais que uma política pessoal ou partidária, foi uma política de Estado?

Exatamente. A agricultura foi política de Estado. Por exemplo, alguns programas como o Leite das Crianças. Ele foi criado lá pelo Requião [Roberto Requião, ex-governador] e é mantido até hoje. Você pega o Banco de Alimentos. O Banco de Alimentos nasceu com o Jaime Lerner [ex-governador] chamado de Supersopa. Aí veio o Álvaro Dias, já deu outro nome. Depois veio o Requião, já deu outro nome. E hoje continua. Então, em termos de agricultura, aqueles programas que eram bons, eles tiveram continuidade.

No final do livro você fala sobre o futuro. Na sua visão, qual é o maior desafio da agropecuária paranaense daqui para frente?

Eu diria que é o desafio mundial. Produzir com sustentabilidade. A questão climática vai ser muito ruim para a agricultura. O ano passado foi péssimo. No ano passado nós perdemos muito de soja, de produtos de grãos por questão climática.

Por que a sustentabilidade é um desafio? Ela envolve uma boa irrigação, envolve preservação de rios, trabalhar mais com energia renovável, conservação de solos... Em algum momento nós erramos, e erramos feio.

Apesar dos alertas que eram feitos pelos presidentes e pelos governadores do Estado, nós erramos bastante quando nós desmatamos o Estado em busca de uma monocultura. A princípio de uma monocultura de café. A gente avançou toda aquela região norte, o norte novíssimo de Maringá, a região noroeste, a gente avançou pra plantar café destruindo florestas.

O sr. falou de alertas. Os governantes alertavam sobre essa prática?

Direto. Era muito alerta sobre o desmatamento desde o início.

Olha, eu confesso que, talvez pelo senso comum, a minha tendência seria acreditar que, em nome do progresso, ou em nome do crescimento do Estado, fosse justamente o contrário.

Não. Isso desde o primeiro, desde Zacarias de Góis e Vasconcelos, que chegou aqui e foi o primeiro presidente dessa província. Sempre, sempre, sempre houve alerta sobre isso. O alerta foi constante de que “amanhã vai faltar isso”, “nós temos que preservar para os nossos filhos”, desde o princípio.

Então o desafio é produzir com sustentabilidade?

Exatamente. Até porque as novas tecnologias estão chegando. Quando eu colhia café, com meus 5, 6 anos, eu nunca imaginei que algum dia houvesse uma máquina para colher café. Já existe. Esse avanço vai ser cada vez maior. O que nós não podemos é, com esse avanço, perder a sustentabilidade.

Por fim, que mensagem você espera que o leitor leve ao concluir a leitura do livro "Terra da Gente"?

Eu quero que, principalmente os paranaenses, mas podem ser os brasileiros todos, sintam uma satisfação. Ou seja, eu fiz parte disso. Eu faço parte disso. Você pode deixar de tudo nesse mundo. Você pode deixar de andar de avião, ou seja, não há necessidade de existir avião, não há necessidade de existir o carro, não há necessidade de existir nada. A única necessidade que existe no mundo é existir alimento. Porque se não tiver alimento, você morre. Então, eu queria que as pessoas sentissem que fazem parte disso, que estão contribuindo para que as pessoas continuem vivendo.

SERVIÇO

O livro “Terra da gente: evolução da agropecuária paranaense 1853-2023”, de Evandro Fadel, tem 366 páginas e foi diagramado e impresso com ajuda da Fecomércio (Federação do Comércio do Estado do Paraná), do Sesc (Serviço Social do Comércio) e da Ocepar (Organização das Cooperativas do Paraná). O material completo está disponível gratuitamente no site da Ocepar e será distribuído a bibliotecas e museus que ajudaram na elaboração.

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