Senti o tempo passando apenas observando os cabelos do meu pai. Não que isso importe, mas também acredito que crônicas sejam sobre coisas miúdas.

É sobre transformar um detalhe num acontecimento essencial pra continuar vivendo. Sobre uma terça-feira qualquer, sobre um dia banal de calor, sobre o sorvete de melão ser algo tão bom, contrariando tudo que eu teria para debater sobre “sorvete de melão” e “bom” estarem na mesma frase.

Assim que iniciei, Gal cantou no rádio “cada um sabe a dor e a delícia ser o que se é”. Estamos há pouco mais de um ano sem Gal; eu ainda escuto rádio; minha sobrinha está passando pela fase menina na mesma velocidade que os cabelos do meu pai vão ficando brancos.

A gente percebe de uma hora para outra.

Dezembros talvez causem essa sensação, embora refletir sobre tempo seja quase diário: estou ficando velha e isso acontece do dia para a noite há anos. A inesperada fragilidade das pessoas que amo só me faz acreditar ainda mais que eu também sou os meus pais, e que quando eles caem, eu caio também. Pai e mãe ocupam um papel diferente no espelho da nossa vida. Pelo menos aqui, no que tô entendendo como reflexo. Como identidade.

E eu também sou um pouco a minha sobrinha passando por tantas transformações de ser mulher. Cada coisa que ela descobre, é como se eu descobrisse de novo.

Nos últimos meses ficamos nós no meio da vida, da morte, da finitude e seus extremos. E misturado a isso tudo, as questões: será que falei tudo que queria? Será que os beijei o suficiente? O jogo da vida tem árbitro de vídeo para verificar aqui onde foi a falta? Talvez, eu nunca saiba.

Mas o fato que é fomos agraciados com a prorrogação, e estamos aqui, contemplando as transformações nas nossas crianças, nos nossos cabelos e nosso rosto. E isso cada vez mais se aproxima de um reencontro. Viver é um exercício de paciência constante, sobretudo quando se vive também nos outros. E também de coragem, amor, medo.

Chego a dezembro fazendo lista de presença com um número a mais de integrantes na família, e não a menos. Meus outros eus, meus livros, os amores da minha vida, minhas mortes, minhas quase despedidas e eu.


O tempo. O espelho. E a gigante vida miúda com todos os nossos anos possíveis e relações que vamos remendando para sobreviver. Viver é ir dando adeus às coisas. E de vez em quando, um olá: Olá!

Mili Alves é analista de Comunicação e graduada em Geografia, especializada em Jornalismo Digital e em Educação Ambiental em Cambé