Produtores de porco moura buscam espaço no mercado de carnes
Raça crioula genuinamente brasileira, universidades do Paraná fazem pesquisas para preservar genética e fomentar criação comercial
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sexta-feira, 27 de setembro de 2024
Raça crioula genuinamente brasileira, universidades do Paraná fazem pesquisas para preservar genética e fomentar criação comercial
Aline Machado Parodi - Especial para a Folha de Londrina
O Paraná deve publicar em breve uma normativa de biossegurança básica para suínos de raças crioulas. Esta será uma das primeiras normas do tipo no Brasil e envolve, principalmente, a raça de porco moura que vem ganhando destaque na produção de carne.
“A norma está tramitando nas áreas internas da divisão e a previsão é que ela seja publicada até o fim deste mês ou início do próximo. A intenção é blindar o sistema. É um conjunto de ferramentas que visa evitar a entrada ou a saída de doenças de um sistema”, explicou João Humberto Teotonio de Castro, chefe da Divisão de Sanidade dos Suínos da Adapar (Agência de Defesa Agropecuária do Paraná).
O sistema de criação do porco moura é diferente das produções industriais. O porco é criado solto na propriedade e se alimenta de frutas e plantas encontradas na área. De acordo com Castro, a norma terá níveis de exigência de acordo com a quantidade de animais produzidos. Quanto maior o plantel, maiores serão as exigências.
Algumas exigências, adiantadas pelo chefe da divisão, serão estabelecer áreas limpas e sujas na propriedade. No caso de criações em piquetes, não poderá haver contato entre os piquetes. “A norma, por exemplo, vai exigir que o produtor troque de calçado e avental, ao mudar de ambiente para, assim termos uma barreira sanitária”, afirmou o chefe.
O produtor terá que investir em adequações das estruturas e dos procedimentos. “Quanto maior biossegurança tem um sistema, menor gasto o produtor terá com mortalidade e custos com produtos veterinários”, argumentou Castro.
O chefe da Divisão de Sanidade dos Suínos da Adapar afirmou que os produtores de porco moura não precisam ficar preocupados com a normativa, pois a cadeia do porco moura está organizada e a maioria dos produtores têm consciência da necessidade de um manejo. Mas o Adapar fará um trabalho de educação sanitária com os produtores. “É uma norma que vem para ser um marco legal dentro da suinocultura não industrial”, ressaltou.
RAÇA BRASILEIRA
O porco moura é uma raça crioula genuinamente brasileira, criada ao ar livre e sem confinamento que se expandiu a partir das reduções jesuíticas do Rio Grande do Sul. No decorrer dos séculos, os rebanhos foram adaptados aos novos territórios, aos diferentes biomas, climas, tipos de alimentação e desafios geográficos.
A raça se espalhou pelo Paraná durante o Ciclo da Banha, quando foi instalada em Jaguariaíva uma fábrica de banha da família Matarazzo, em 1920. A partir dos anos de 1960, com o surgimento de suínos comerciais, o porco moura perdeu espaço no mercado.
Nos últimos anos, pesquisadores das UFPR (Universidade Federal do Paraná) e UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa) vêm desenvolvendo pesquisas para preservar a genética da raça e fomentar a criação comercial.
Há dois projetos de lei, de autoria do deputado Luiz Claudio Romanelli (PSD), coordenador da Frente Parlamentar de Promoção Municipalista, propondo o reconhecimento da raça moura como patrimônio histórico, cultural e genético do Estado (PL 386) e a inserção da Semana Estadual dos Porcos Crioulo no calendário oficial de eventos do Paraná (PL 387). Ambos estão em tramitação na Assembleia Legislativa do Paraná.
“Nosso objetivo é criar uma legislação que possa certificar os produtores do porco moura no Paraná. Esta raça é um patrimônio histórico, cultural e genético do nosso estado e produz uma carne diferenciada. O estímulo à criação é importante para a economia e pode ajudar no desenvolvimento da agricultura familiar porque há boas perspectivas para que seja uma fonte de renda adicional nas pequenas propriedades”, considerou Romanelli.
De acordo com Divo Molinari, presidente da Associação Paranaense de Criadores Porco Moura, há muitos produtores interessados na raça, mas que ainda necessitam de assistência técnica, legislação apropriada e linhas de financiamento para expandir a criação.
Mapeamento genético da raça
A UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa) realizou um trabalho de mapeamento dos exemplares de porco moura existentes no Paraná, com o objetivo de identificá-los e direcioná-los ao acasalamento para preservar o patrimônio genético da raça.
O trabalho foi conduzido pela zootecnista Maria Marta Loddi, professora da UEPG. “Fizemos um mapeamento no Paraná, onde existiam poucos núcleos de criadores, e introduzimos materiais genéticos de Santa Catarina, da Embrapa, e do Rio Grande do Sul. Dessa forma aumentamos o número de criadores no Estado e estamos salvando a raça da extinção”, disse a professora.
Foram anos de pesquisa, percorrendo áreas do Centro-Sul do Paraná. Segundo ela, em alguns meses deve sair um novo mapeamento, resultado de uma tese de doutorado de um pesquisador da UEPG. E ela afirma que houve uma evolução no plantel nos últimos 10 anos. “Foi um trabalho intenso para que não houvesse animais consanguíneos”.
Maria Marta afirma que o rebanho de porco moura é de pequenos produtores, maioria de faxinais (propriedades de subsistência). “São produtores com um macho e duas fêmeas, por exemplo”, disse.
MAIS RESISTENTES
O porco moura é um animal mais rústico, com pelo mais escuro, criado livre, no sistema extensionista. Eles são mais resistentes a doenças. “Para quem fez pesquisa isso é muito interessante. Você conserva a sua ancestralidade. Ainda não conhecemos todo o potencial da raça como um animal comercial. O Moura tem uma carne diferenciada porque ele caminha bastante. A carne do porco industrial é mais branca, já a do moura é mais avermelhada, parece uma carne de boi”, explica a zootecnista.
Há mais de dez anos, a UFPR (Universidade Federal do Paraná) desenvolve o Projeto Porco Moura, que busca resgatar a genética que existia até 1950, quando o país passou a olhar mais para as raças comerciais.
“Quando a gente consegue resgatar [rebanhos crioulos] com a genética original, eles não são padronizados. Isso quer dizer, que tem uma variação dentro do grupo, mas têm genes que garantem a capacidade de sobrevivência, de produção e de qualidade de produtos. Da capacidade de aproveitar alimentos diferentes”, explica o professor Marson Bruck Warpechowski, responsável pelo projeto.
As raças crioulas possuem genes que são capazes de promover características de aproveitamento de alimentos, que outras raças não conseguem. Por exemplo, eles são capazes de se alimentar de batata inglesa crua, que são venenosas, mas por terem crescido em um bioma que lhes forneciam esse alimento, eles se adaptaram.
“Elas [raças crioulas] ficaram adaptadas ao que tinha disponível em cada bioma, em cada local do Brasil. As raças crioulas são mais resistentes como grupo, adaptadas a situações diversas e específicas”, disse o professor. O Projeto Porco Moura quer ser um exemplo de como desenvolver cada raça crioula em sua região de origem.
REBANHO
Segundo Warpechowski, não há dados exatos a respeito do tamanho do rebanho de porco moura no Paraná. Em 2014, o projeto havia encontrado em todo o sul do país 118 exemplares, entre machos e fêmeas. Ao longo dos anos, o número de animais considerados puros foi crescendo, um estudo publicado em 2018 apontava para cerca de 420 reprodutores com histórico familiar identificado. “Começamos um novo trabalho em 2020, mas veio a pandemia e parou tudo. Ainda não conseguimos retomar”, disse o professor.
“Temos uma estimativa, bem subjetiva, que no Paraná tenha, com certeza, mais de 100 criadores com genética que se pode chamar de pura. E no sul do Brasil a gente calcula que tem 250 criadores”, afirmou o pesquisador. O projeto dá assistência técnica remota para vários criadores em todo o Brasil.
Carne semelhante à bovina premium
De acordo com o responsável pelo Projeto Porco Moura, da UFPR (Universidade Federal do Paraná), professor Marson Bruck Warpechowski, o estado está construindo um mercado para a carne do porco Moura. “Até pouco tempo não existia um mercado legal de carne de porcos crioulos. O que existia era um mercado ilegal, muito localizado, em lugares remotos”, explicou o professor. Mas agora esta realidade vem mudando.
As características da carne do moura, muito semelhante à de carnes bovinas premium, vem chamando a atenção de chefs e consumidores exigentes. “É um produto totalmente diferente da carne de porco industrial”, explicou o professor.
Apesar da crescente procura por carne de porco Moura, ainda há um hiato entre os produtores e os consumidores. Há poucos abatedouros que fazem a produção da carne. A CR Agro, uma empresa de consultoria agropecuária, tem feito um trabalho de rastreabilidade da carne do porco moura e, criando oportunidades para juntar produtor e mercado.
O sócio fundador da empresa, o zootecnista Charles Ortiz Novinski, percebeu que o produtor não tinha acesso às técnicas desenvolvidas pelo Projeto Porco Moura, do qual fez parte, então em 2020 começou a dar consultoria para os criadores sobre padronização de criação e de carcaças. Mas encontrou um obstáculo. “O que adianta o produtor produzir, cuidar e ter um animal de qualidade, se ele não consegue acesso ao mercado? Então fui atrás de parcerias para fazer o processamento e ter o corte de carne pronto. Passei o ano de 2020 estruturando isso e consegui um parceiro”, conta Nowinski.
A indústria recebe as carcaças, faz a desossa e, assim, o produtor consegue acessar o mercado e disponibilizar os cortes prontos para comercialização. A base da indústria é em Curitiba, mas possui abatedouros em diferentes cidades da região Centro-Sul do Paraná. “A nossa estratégia foi reduzir o tempo de transporte da propriedade até o frigorífico para que o animal não fique estressado”, justifica o zootecnista.
A empresa tem atendido clientes em Curitiba, Ponta Grossa, Guarapuava e Palmeira e, eventualmente, tem fornecido carne para Santa Catarina, São Paulo e Rio de Janeiro. Os principais clientes são restaurantes e açougues boutique.
A CR Agro presta consultoria para seis criadores e trabalha com os principais cortes do lombo. “Padronizamos e nomeamos os cortes diferentes do que é a desossa dos suínos industriais. Temos o bife ancho, o prime rib, short rib, o T-bone que são cortes do lombo e que tem mais demanda”, explica Nowinski.
Hoje, o estoque de animais que a CR Agro tem no campo é suficiente para atender a demanda do mercado, mas nem sempre foi assim. Mas no primeiro ano, faltou animal. A estratégia da empresa é mostrar ao consumidor que a carne do porco Moura é um produto que tem história, que é um produto exclusivo. Sem falar que é uma carne de alta qualidade e diferente da carne suína industrial.
CADEIA COMPLETA
O produtor João Guilherme Muffato, da Fazenda Taquari, em Cascavel (Oeste) começou a criação de porco moura como hobby, em 2017, pelo contexto histórico da raça. Ele tinha na propriedade um macho e duas fêmeas da espécie. “Foi mais pelo contexto histórico. Eu já conhecia a qualidade superior da carne”, contou. Hoje, a atividade se transformou em um negócio com boas perspectivas de crescimento.
Com as orientações do Projeto Porco Moura, da UFPR (Universidade Federal do Paraná) , ele foi ampliando o plantel. “Com orientação do professor Marson [Marson Bruck Warpechowski, responsável pelo Projeto Porco Moura] comprei mais um macho e ampliei o plantel. Hoje tenho 37 fêmeas produzindo e dois machos”, disse Muffato. A fazenda abate de oito a dez cabeças de porco por semana, que representam em torno de 3,5 toneladas de carne limpa por mês. A propriedade fornece carne para mercados de Cascavel e alguns restaurantes de fora da cidade.
“Sempre dei prioridade para manter a ideia do Projeto Porco Moura que cria os animais a pasto. Eles comem frutas todos os dias. Faço uma batida de concentrado feito na fábrica de ração da fazenda. Hoje a produção está viabilizando o negócio”, afirmou o produtor.
Ele disse que consegue agregar mais valor aos animais. A raça não é selecionada para alto desempenho, com ponto de abate mais demorado, em contrapartida tem uma qualidade excepcional de carne.
O grande desafio, segundo o produtor, foi colocar a carne na área de venda do supermercado e precificar de maneira correta. “A dona de casa, o cliente, estão acostumados a comer carne suína como uma carne barata. O porco moura vem quebrando esse paradigma da carne de qualidade no suíno. O desafio é conseguir atingir o cliente certo”, ressaltou.
Ter o frigorífico dentro da fazenda e o supermercado como ponto de saída facilita o negócio. “Mesmo assim é um desafio. A venda é pouca, não dá para comparar com o suíno industrial. Mas tenho esperança e a perspectiva é muito boa. O cliente está aberto a novos tipos de carne e está disposto a pagar por isso”, disse.
Muffato tem feito experimentos com a produção de presunto de carne de porco Moura. Mas a charcutaria ainda está incipiente.