Além do uso medicinal, a Cannabis pode ser utilizada para fazer tecidos e material para construção civil, com um potencial, em âmbito internacional, de desenvolvimento de 25 mil produtos.

O cálculo é do agrônomo Derly José Henriques, professor titular da UFV (Universidade Federal de Viçosa), em Minas Gerais. Doutor em genética e melhoramento de plantas, Henriques aguarda o aval da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para criar o primeiro banco de germoplasma da planta da América Latina - uma espécie de coleção de diferentes variedades da espécie para fins de preservação, estudo e seleção daquelas que mais se adaptam a cada região e a cada finalidade.

Por aqui, a Lei Antidrogas de 1938 proibiu até o cultivo para fins de pesquisa. Agora que o mundo vive uma onda de legalizações e que a discussão sobre o tema avança no Judiciário e no Legislativo, pesquisadores tentam reduzir o déficit do Brasil nesse hiato de mais de 80 anos e buscam autorização para conduzir experimentos em vários campos da ciência.

Pesquisadores buscam autorização para conduzir experimentos em vários campos da ciência
Pesquisadores buscam autorização para conduzir experimentos em vários campos da ciência | Foto: iStock

Henriques, que é curador do banco de germoplasma de hortaliças da UFV, começou a pesquisar a Cannabis em 2017, em um projeto que avaliou quatro variedades cultiváveis no Brasil, com autorização da Justiça Federal.

Banco de germoplasma

O pesquisador defende que o Brasil tem potencial para transformar a planta em uma commodity agrícola e negocia o apoio dos ministérios da Agricultura e da Saúde a seu projeto. "As negociações estão andando muito rápido. Há instituições públicas com grande credibilidade dispostas a entrar conosco no estudo de variedades do banco de germoplasma", afirma.



O que é um banco de germoplasma e por que criar um para a Cannabis?

É uma grande coleção de variedades diferentes de uma mesma espécie, que nos permite preservar a variabilidade genética daquela planta. Temos um banco de germoplasma na UFV com várias espécies, mas, por questões judiciais e legais, estamos criando um específico para a Cannabis. A ideia é receber tanto plantas cultivadas no Brasil quanto no exterior, para que possamos fazer uma descrição confiável do comportamento botânico, agronômico e químico de cada uma e mostrar para a população quais delas podem ser utilizadas com segurança para cada objetivo.

O que significa um uso seguro?

É quando uma variedade de planta foi avaliada para cultivo naquela região e para o objetivo que se quer alcançar. Isso é o que não acontece no Brasil. O que temos é um cultivo às cegas.

As variedades são muito diferentes umas das outras?

O óleo e outros compostos químicos da Cannabis são muito influenciados pelo ambiente. Uma variedade descrita e lançada na Austrália pode ter um comportamento completamente diferente, do ponto de vista químico, de outra que venha das montanhas de Minas Gerais, que por sua vez pode ser diferente da mesma variedade cultivada no Rio de Janeiro.

Qual aplicação prática essas pesquisas podem ter?

Estamos falando, no mercado internacional, de algo em torno de 25 mil produtos. É uma enorme gama de utilizações: para fins medicinais, para fazer tecidos, cordas, cosméticos com óleos ultra-hidratantes, material para a construção civil. É possível fabricar tijolos muito leves, com conforto térmico e sonoro e a um preço baixo, por exemplo. A gente precisa conhecer cada variedade para saber como utilizá-la melhor.

Em que pé está o projeto?

A UFV já aprovou, e o departamento de agronomia nos cedeu uma área de 2.500 metros quadrados para um cultivo futuro. Vamos ter plantio em estufas, uma câmara fria e seca e um laboratório para extração e caracterização dos quimiotipos [diferentes combinações de concentração de canabinoides]. Queremos crer que dentro de dois a três anos tenhamos produtos que possam ser avaliados pelas empresas das áreas medicinal e industrial, que são nosso grande foco. Agora falta a Anvisa aprovar. Fizemos o pedido em junho.

Já há precedentes para essa autorização?

A maioria dos pedidos para uso medicinal no Brasil são feitos à Justiça. Mas as universidades federais do Rio Grande do Norte e de Santa Catarina já conseguiram autorização da Anvisa para cultivar algumas plantas para fins de pesquisa. A diferença do nosso projeto é o tamanho: pedimos para cultivar até 5.000 plantas, o que nos permitirá ter uma grande variabilidade genética.

O sr. notou uma mudança na percepção social a respeito da Cannabis desde o início de suas pesquisas?

Muito. As críticas são sobre o uso recreativo, mas as pessoas precisam ampliar a visão. Estamos falando da possibilidade de redução de doença de Parkinson, da construção de casas populares baratas, de estabilizadores de perfume, roupas de qualidade. A partir do momento em que a sociedade brasileira passou a ter uma noção do que está em jogo, os chamados grandes players começaram a se mostrar. Este é o momento "risco Brasil Cannabis". Mas aquelas empresas de visão estão prontas para investir e correr esse risco. O Brasil tem uma grande chance de transformar a Cannabis em uma grande commodity do mundo tropical.

Por quê?

Temos uma grande área agricultável e muita variedade de climas, de oferta de água, de tipos de solo. Então, podemos produzir uma ampla gama de quimiotipos. Além disso, a Cannabis tem raízes muito fortes, que ajudam na recuperação de solos, e pode ser utilizada como uma planta companheira dos grandes plantios do agro. Podemos fazer um consórcio com milho, com soja, trigo, algodão. É uma planta que tem toda chance de entrar no sistema agrícola brasileiro sem causar estresse e que também pode ser utilizada pela agricultura familiar para criar muitos produtos, inclusive artesanais.

A atual legislação dificulta a pesquisa científica da planta?

Diferentemente de outros países, a lei brasileira não permite o cultivo nem para pesquisa. Estamos parados desde a década de 1940. Enquanto isso, Canadá, EUA, Israel, Austrália, que também proibiam o uso, continuaram a fazer pesquisas de modo estratégico, em áreas sem acesso da população. Quando o uso foi liberado, eles já tinham as variedades. O Brasil tem que correr para reduzir a distância. Já estamos para trás, mas podemos reverter esse quadro.