A pesquisadora da Embrapa Soja Mariangela Hungria está na primeira posição brasileira e é a única da América do Sul no ranking dos 100 principais cientistas em fitotecnica e agronomia do mundo, em ranking publicado pelo research.com, site que oferece dados sobre contribuições científicas em nível mundial. Entre a centena de cientistas no topo do ranking, Mariangela figura na 64ª posição. Nesse grupo dos 100 primeiros, somente 6% são mulheres.

O ranking considera as contribuições científicas, publicações e citações dos profissionais coletadas em 6 de dezembro de 2021.

Ao todo, foram analisados perfis de quase 167 mil cientistas do mundo em 21 áreas das ciências. Na área de fitotecnia e agronomia, foram examinados mais de 2.575 perfis. Nesse ranking no qual Mariangela está em destaque, constam 36 brasileiros, nove da Embrapa, sendo dois renomados cientistas já falecidos, Nand Kumar Fageria (Embrapa Arroz e Feijão) e Johanna Döbereiner (Embrapa Agrobiologia). Entre os 36 brasileiros, 6 são mulheres.

Mariangela possui graduação em Engenharia Agronômica pela ESALQ-USP (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz/Universidade de São Paulo) fez mestrado em Solos e Nutrição de Plantas na mesma instituição, doutorado em Ciência do Solo na UFRRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e pós-doutorado em três universidades: Cornell University, University of California-Davis e Universidade de Sevilla.

A pesquisadora é comendadora da Ordem Nacional do Mérito Científico e membro titular da Academia Brasileira de Ciências. É pesquisadora da Embrapa desde 1982 e está lotada na Embrapa Soja, em Londrina, desde 1991. É professora e orientadora da pós-graduação em Microbiologia e em Biotecnologia na UEL (Universidade Estadual de Londrina) e no curso de Bioinformática na UTFPR (Universidade Tecnológica Federal do Paraná) .

Ela é uma das responsáveis pelo desenvolvimento das tecnologias de inoculação e coinoculação da soja, o que tem promovido grandes saltos de produtividade no campo: a fixação biológica do nitrogênio traz uma economia anual de 14 bilhões de dólares ao Brasil, ao dispensar o uso de adubo nitrogenado.

Como analisa este destaque como cientista?

Fiquei muito surpresa, muito alegre, porque você vê o reconhecimento de toda uma vida. É tudo tão corrido, parece que é um rolo compressor para a gente conseguir dar conta de tudo. Mal dá tempo de parar para pensar porque temos que correr muito e as coisas estão mais difíceis.

Eu nunca imaginei estar nesse patamar. Quando eu escolhi agronomia, era uma profissão estritamente masculina, hoje eu adoro ver que o perfil está mudando muito, tem muitas mulheres. Mas mesmo assim, com todas as dificuldades que passei, tive dificuldades familiares, para criar filhos, dificuldade financeira.

Mas nós, mulheres, temos algo que eu classifico como responsabilidade emocional. Somos nós que acabamos assumindo toda responsabilidade emocional quando a coisa aperta e isso às vezes tira da gente um tempo que poderia ser dedicado à pesquisa, ao trabalho. Mas apesar de todas as dificuldades que passei, estar nessa posição é inconcebível.

Ouvimos todo tempo que o Brasil é top em agricultura, que esse setor paga nossas contas, realmente é. Mas aonde a gente vai chegar sem ciência? Está ridícula a representatividade do Brasil nesse ranking. Só 36 brasileiros em mais de 2 mil perfis. Estados Unidos tem 554, Austrália 183, Reino Unido 141. Mesmo ao pegarmos alguns países como Itália – e não há comparação da agricultura italiana com a brasileira –, são 48.

Isso mostra que nós realmente estamos em trevas no financiamento de pesquisas. Se continuar desse jeito, se a gente não assumir também essa liderança na ciência ligada à agricultura, passaremos a ser importadores de ciência e tecnologia nesse setor. Então é tempo de repensar e reverter esse quadro.

Nós estamos realmente passando uma época de trevas na ciência, com total falta de financiamento e de acreditar na ciência por parte dos nossos governantes. E só a ciência pode levar ao futuro, à melhoria de vida das pessoas.

Quais os seus maiores desafios hoje?

Mariangela Hungria trabalha com micro-organismos cujos processos conseguem substituir parcial ou totalmente os fertilizantes químicos
Mariangela Hungria trabalha com micro-organismos cujos processos conseguem substituir parcial ou totalmente os fertilizantes químicos | Foto: Luciano Pascoal/Arquivo Embrapa Soja

Você não imagina como é difícil ser pesquisador da rede pública, a rede que realmente se compromete a ter resultados de longo prazo. Você pode ter uma ciência com resultados de curto prazo, mas só vai ter um retorno contínuo se tiver ciência que der resultado a curto, médio e longo prazos.

E realmente, a longo prazo, eu só vejo possibilidades no Brasil na pesquisa pública porque a iniciativa privada não investe a longo prazo. Eles precisam de um retorno, de um lucro a curto prazo. Então para isso a gente precisa de pesquisas e de projetos de longa duração.

Não estou falando de projeto de 2 anos, estou falando de projetos que você possa ter uma garantia de 4, 5, 6 anos, que daí você vai num contínuo de receber resultados. Nós estamos passando em épocas muito difíceis, acho que nunca passei por uma época tão difícil, tipo receber zero de financiamento, você ter que se virar e tudo.

Eu falo que no Brasil a gente não faz pesquisa, a gente faz milagre. Então eu penso até que essa minha posição e a posição desses 36 brasileiros certamente valem muito mais do que uma posição de um pesquisador dos Estados Unidos, da Austrália, de Israel, por exemplo.

Eu já trabalhei lá fora e sei como é. Você pede um reagente, chega no mesmo dia. Você não tem limitação de dinheiro, não tem que pagar taxa de importação, é tudo mais barato. Então aqui é difícil. E o Brasil não está vendo que essa posição tão difícil causa uma fuga de cérebros, talvez a maior que a gente já passou.

Os nossos alunos todos estão indo embora. São pessoas que a gente investiu 10, 12 anos na formação, ensino público de graduação, mestrado, doutorado, pós-doutorado. Eles estão indo prontinhos, superinteligentes e supercriativos para a Itália, pro Japão, pros Estados Unidos, pro Canadá.

Eu posso dar exemplo de ex-alunos porque sou professora da UEL também, de pós-graduação. Eles foram para todos os continentes porque não há condições aqui de trabalhar e estão em início de carreira, precisam começar a produzir e fazer o nome, senão a situação pode ficar irreversível.

Qual o principal foco das suas pesquisas?

Eu queria trabalhar com microbiologia desde quando era criança. As pessoas falavam que não tinha nada a ver. A gente estava na época da Revolução Verde, de todos os fertilizantes químicos, mas eu amava os micro-organismos numa época que ninguém dava nada para aquilo.

Falavam que eu estava desperdiçando minha inteligência, mas eu falei: “É isso que eu acredito” e fui. E estou feliz porque ainda em vida vi o reconhecimento disso. Hoje, os micro-organismos estão muito considerados, são insumos, tivemos o decreto dos bioinsumos. E agora, temos a crise dos fertilizantes.

Eu trabalho particularmente com micro-organismos cujos processos conseguem substituir parcial ou totalmente os fertilizantes químicos. Então a gente está muito em alta. Já lançamos mais de 8 produtos no mercado que fazem substituição de nitrogênio, de fósforo, de potássio. E temos uma supercarteira de micro-organismos que aumentam a tolerância da soja à seca, que controlam doenças e, principalmente, atuam nessa parte de substituição dos fertilizantes químicos.

As pesquisas da professora Mariangela Hungria ajudaram o Brasil a promover grandes saltos na produtividade da soja
As pesquisas da professora Mariangela Hungria ajudaram o Brasil a promover grandes saltos na produtividade da soja | Foto: Marcos Zanutto /19-11-2019

Nós temos muitas entregas planejadas para os próximos anos e esperamos conseguir sobreviver a esse período para segurarmos os nossos jovens cientistas, para que no futuro eles possam dar continuidade a esse legado de pesquisa em micro-organismos na agricultura que estamos tentando deixar pro país.

Gostaria de destacar algo mais que considera relevante?

Hoje meu principal papel é dar continuidade e inspirar o maior número de jovens para dar continuidade a todo esse esforço de uma vida. A vida de cientista não é fácil, é uma dedicação muito grande. A gente não tem sábado, não tem domingo, não tem noite. Toda noite eu estou trabalhando em casa, todo final de semana eu tenho um trabalho. A gente não consegue parar.

No mundo de hoje, ainda que as coisas acontecem mais rápido, é mais difícil, você tem que estar atualizado, é um mundo competitivo para você publicar os seus trabalhos, difundir suas tecnologias.

Existem tecnologias públicas que são contra o poder econômico. Então, no nosso caso, é uma luta corpo a corpo. Porque todas as nossas pesquisas, por exemplo, indicam que a soja não precisa de nenhum fertilizante nitrogenado, só as nossas bactérias dão superconta de tudo. Mas a gente tem muita pressão da indústria de fertilizantes químicos querendo colocar nitrogênio fertilizante na soja.

São lutas que a gente tem e realmente se desgasta, não dorme direito, fica nervoso, quer convencer os agricultores. É uma vida difícil, mas quando você vê um aluno formado, um aluno arrumando emprego, o aluno dando uma aula falando aquela frase que você falou. Quando você vê que um agricultor fez o que você recomendou e ele está muito feliz, produziu mais, viu que o solo dele está muito melhor. É que nem dor de parto, você esquece tudo e está pronto para varar mais uma noite, um final de semana trabalhando, orientando as pessoas e seguindo adiante com a ciência.