Sou uma estrela qualquer que desceu do seu habitat, que é o Céu, unicamente para me banhar num rio cheio de charme em que houvesse muitos peixinhos e o qual, lá de minhas alturas, eu avistava com muita clareza.

Imagem ilustrativa da imagem Mini dedo de prosa
| Foto: Marco Jacobsen

Não sei se vocês sabem, mas lá onde moramos também somos poluídos por uma bactéria, que chamamos de um tal pó de mico, e de vez em quando somos obrigados a nos banhar, e cada estrela escolhe o jeito de se limpar dessa impureza.

Para que possamos usufruir desse privilégio e desta necessidade, temos que ter boa conduta e seguir todas as regras estipuladas por um anjo indicado por Deus, e aquele que for desobediente ficará sem seu banho e perderá todo seu encanto e sua luminosidade.

Cada pessoa boa que deixa essa vida é recebida por nós com festas e muita música boa. Depois, seu espírito é transformado em estrela e goza de todas as coisas boas e regalias, lá dentro do Céu, junto com Deus e todos os seus anjos. Depois, volta e fica morando junto de nós. Lá não temos diferenças de homem ou mulher, somos todas iguais.

Ao chegar aqui na Terra, de súbito já fui entrando naquelas águas límpidas e cristalinas, assustando um pouco os peixinhos que lá nadavam tranquilamente, entretidos em seus afazeres.

Quando me viram e souberam que eu era uma daquelas estrelas lá do universo, me abraçaram, me beijaram com alegria indescritível.

Disse-lhes meu nome, quantos anos tinha e o que fazia junto de minhas amiguinhas.

Fiquei sabendo também o nome de todos e suas procedências e descendências. Também me admirei com as peripécias e acrobacias e agilidades, como iam e vinham abanando suas caudas e barbatanas dorsais, e o milagre daquelas cores multicores. Depois de nossas apresentações, perguntas e respostas, me contaram que as margens do rio eram seus lares e que lá, encostados aos barrancos, é onde dormiam e sonhavam.

Enquanto dialogávamos sobre diversos assuntos, um fio de nylon pairou no meio de nós e, no final da linha, tinha amarrado um anzol com uma isca que com certeza era um pedaço de minhoca que, ainda meio viva, ali se mexia, querendo atrair um pobre peixinho.

Quando notei o perigo que corriam, de um salto abocanhei o anzol e aquele pedaço de minhoca; e num segundo, fui tirada para fora do rio e jogada ali na margem.

Enquanto eu me esforçava para livrar-me daquele enrosco na minha boca, vi um sujeito todo risonho que vinha vindo ao meu encontro, mas, nessa hora, o meu brilho intenso em seus olhos ofuscou-lhe a visão, deixando ele quase totalmente cego.

Pensando tratar-se de um extraterrestre, saiu em desabalada carreira, deixando ali toda sua parafernália de pesca;

De volta aos meus amigos peixinhos, fui saudado e elogiado por eles em virtude da minha coragem e ousadia por tê-los livrado do perigo que corriam.

Disse-lhes que não fiz mais do que minha obrigação, por ser eu uma divindade e ter enormes recursos, para livrar quem quer que fosse dos perigos desta vida.

Enquanto eu lhes falava dos meus dotes, ouvi um ruído. Não, não era um ruído. Era um som, como se fosse uma orquestra ao longe, desfilando uma valsa vienense.

Perguntei aos peixinhos de onde vinha aquela música maravilhosa tão bem executada.

Todos queriam responder ao mesmo tempo. Daí, eu os interpelei e disse-lhes que se acalmassem, e que eu ouviria um de cada vez; escolhi um dentre eles, que começou assim: "Minha querida estrelinha do céu, eu tenho a máxima satisfação em levar ao seu conhecimento que esta melodia que estás ouvindo não se trata de nenhuma orquestra sinfônica, mas sim de uma enorme cascata que deságua em abundância; um jorro de água que não para um só instante, e que ao cair sobre as pedras, daquelas alturas, chocam-se com elas, que estão lá há centenas de anos, formando um piso inquebrável, produzindo um festival de borbulhas que explodem dando um espetáculo de sons variáveis."

Agradeci aquela explicação e perguntei qual deles me daria o prazer de uma contradança; foi um tal de "eu, eu, eu" e por fim decidi por um e, enquanto dançávamos, expliquei-lhe que aquela sinfonia fora composta por um músico muito talentoso que se chamava "Johann Strauss” e a música se chamava “Danúbio Azul”. Depois vieram outras e assim pude fazer a alegria de todos aqueles peixinhos espertos e maravilhosos com outras sinfonias e outros compositores do passado.

Após o banho e o entretenimento com aquelas criaturinhas tão simpáticas, despedi-me de todos eles, prometendo um esperançoso breve regresso.

Na hora que fui iniciar a volta ao meu lar, lembrei-me das ferramentas do pescador que, sem pensar duas vezes, levei comigo e as distribuí aos pássaros pescadores do alto mar.

João Caldeirão é leitor da FOLHA em Sertanópolis