Conversando com um de meus irmãos mais velhos há alguns dias, lembramos de uma passagem curiosa sobre algo de nossa infância. Mais especificamente da infância dele. Morávamos na Vila Casoni, onde meu pai tinha uma pequena fábrica de doces depois de uma juventude trabalhando no sítio de meu avô, em Cambé, junto com seus irmãos.

Fabricava e depois saía vendendo pelo norte do Paraná. Como todos os dias, meu irmão foi pra Escola Carlos Dietz, que era longe de casa e ele ia sempre com minha irmã. Naquele dia, porém, minha irmã não pôde ir, não sei o motivo e ele então voltaria com um amigo da escola.

Dada a lei de Murph no cenário, onde quando uma coisa fadada a dar errado dá mesmo, o colega de escola disse que não poderia voltar com ele naquele dia por todo o trajeto. Então, ele saiu da escola e seguiu pelo caminho de sempre, ou pelo menos ele achou que era o mesmo e inevitavelmente se perdeu.

Naquela época a criançada andava muito a pé. Não era fácil pegar um ônibus porque não tinha linhas pra todo lado da cidade como hoje, em Londrina, nem tinha vale transporte para estudante, assim como o dinheiro era mais escasso. Transporte escolar, nem sei se existia e também se tivesse a gente não ia ter tanto dinheiro pra gastar, afinal, éramos em cinco naquela época pois o caçula iria vir alguns anos depois ainda completando os seis filhos.

icon-aspas quem tem boca vai à Roma

A vida era na base da economia. Então as opções eram, ou o pai levava, ou pegava carona com vizinho ou conhecido, ou ...ir a pé. E fazia-se isso sem reclamar, era muito comum as crianças irem `a escola a pé. Era todo mundo arrumadinho com um guarda-pozinho branco, jaleco como chamamos hoje, uma bolsinha de embornal de tecido de sacaria de farinha, pois as mães em geral sempre tinham uma máquina de costura com uma base de ferro, herdada de uma avó. E lá se ia rumo à escola, templo do aprendizado do conhecimento humano (não havia aula remota ainda).

E lá estava indo meu irmão, então, estranhando a paisagem das casas que não eram as mesmas dos dias anteriores, andando meio devagar e pensando o que todo bom perdido deve fazer: pedir ajuda! Afinal, como diz o velho ditado ”quem tem boca vai à Roma”. E assim o fez. Viu um casal conversando na calçada e disse que estava perdido. Foi um ato arriscado, mas o desespero de se ver perdido foi maior do que o medo de ser raptado, afinal, naquela época as mães colocavam medo na meninada pra não ficar na rua, dizendo que havia o “homem do saco”.

Não se sabe ao certo como apareceu essa lenda urbana que era personificada por um homem que andava nas ruas e enfiava as crianças desobedientes dentro de um saco que carregava nas costas. Por isso, se qualquer criança visse um homem com um saco nas costas já se escafedia pra dentro do portão de casa.

Imagem ilustrativa da imagem Meu irmão e Shakespeare
| Foto: iStock

O homem perguntou onde ele morava e meu irmão disse que era perto da Igreja Nossa Senhora da Paz, na Vila Casoni. O homem despediu-se da mulher e falou que ia levá-lo para casa. Meu irmão ficou surpreso porque, na verdade, só queria uma informação de onde estava, mas o homem falou pra ele subir na moto. Uma moto enorme, parecia aquelas motos de polícia dos filmes americanos.

E lá se foi meu irmão na garupa da moto que fazia um barulhão. Sem muita demora chegaram na frente de casa, parecia que o homem era bom de geografia, pois foi na direção certa. Minha mãe já estava desesperada e meu pai tinha acabado de chegar de viagem. Os vizinhos todos já conversando e procurando saber do paradeiro do meu irmão quando de repente chega ele triunfal naquela moto grandona com aquele homem desconhecido. Todo mundo ficou surpreso. Queriam saber o que tinha acontecido.

Conversando com o homem da moto, ele disse que era policial e quando viu que o menino pediu ajuda por estar perdido fez questão de levá-lo de volta para casa. Meu pai e minha mãe agradeceram muito. Foi um momento de grande alívio ver meu irmão de volta. Meu irmão, vendo que meu pai não tinha gostado nada daquela situação toda disse: - Me perdi!

Nada mais foi dito ou explicado. E todos entraram felizes pelo portão de casa. Meu irmão até hoje se lembra da frase "me perdi” como uma frase salvadora e ainda é motivo de boas gargalhadas, pois meu pai não tinha gostado nada daquela situação, mas provavelmente deve ter lembrado de Shakespeare: “Tudo está bem quando acaba bem”.

Dailton Martins é leitor da FOLHA.


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