Imagem ilustrativa da imagem DEDO DE PROSA| “A boneca”
| Foto: Marco Jacobsen

O circo era enorme (só não me lembro o nome dele, devido o tempo que passou ou já é reflexo da idade que estou).

Mas lembro-me bem que era um circo muito grande e bonito com suas bandeirolas dependuradas agitadas, coloridas em toda sua circunferência entre as paredes e a lonas de madeira em verticais eram também coloridas, que faziam nossas emoções dispararem num tropel sem fôlego.

A maioria que entrava por uma pequena porta, era de crianças de todas as idades, o resto era de adolescentes, adultos e idosos; todos com um sorriso contagiante como quem nunca vira um espetáculo circense.

Lá dentro, o vendedor de pipocas e amendoim não dava conta de atender aquela multidão. Naquele seu vai e vem, em pouco tempo se esgotará todo seu estoque, e olhe que sua cestão não era pequena, pobre de mim que fiquei sem, a ver navios com lombrigas alvoroçadas querendo sair pela boca. Guardei a cédula de dinheiro toda amassada e suada em minha mão de tanto que a apertava com medo de perdê-la.

Estávamos sentados nas arquibancadas, onde as tábuas foram colocadas a revelia, sem nenhuma segurança sequer (não custava um parafuso para fixá-las, para dar mais segurança e diminuir os acidentes na hora de subir e descer). De vez em quando, um tropeçava e ia ao chão, mas sem nenhuma gravidade, graças a Deus.

O ar lá dentro estava totalmente insuportável por causa do pó, que levantava do chão, causado pela grande agitação do público.

Depois de alguns minutos, notei um quadrado cercado por estreitas tábuas, sem entrada e sem saída. Ali haveria um espetáculo de tourada, me deixando completamente encabulada sem saber por onde o touro, boi ou vaca; fora o toureiro (que podia pular o cercado), ia entrar por ali.

Um senhor sentado ao meu lado, acompanhado de uma criança que devia ser seu neto e que não lhe dava um minuto de sossego, chamou minha atenção, que para amenizar sua impaciência, que estava para explodir (eu acho); fiz-lhe esta pergunta: senhor, por acaso o sr. pode me responder por onde os animais a serem toureados vão entrar naquela minúscula mangueira? Pois não vejo portão e nem porteira, fora o toureiro.

- Olha meu filho, disse-me: essa pergunta é muito inteligente e ao mesmo tempo interessante, sabe que você me deixou indignado. Vamos esperar o início, para saber o resultado da pergunta e já que iniciamos uma amizade, você está com os canhotinhos do talão, que dá o direito ao prêmio que será sorteado no fim do espetáculo? Olhe que é a mais linda boneca que já vi, aquele que ganhar, não se arrependerá do sacrifício de ter vindo nesta espelunca, ela tem quase um metro, eu já a vi nos braços de um dos palhaços.

Disse-lhe eu: tenho aqui comigo três bilhetinhos pro sorteio e estou com um prenúncio que aquela boneca vai ser nossa e vou dar a esta minha irmã, ela nunca teve uma boneca, ainda mais linda como essa! A gente sempre foi muito pobre (eu nunca tive uma bola). Meu pai sempre fora uma pessoa doente.

Meu pai era espanhol da gema e quando ele tomava umas branquinhas ficava impossível, botava na cabeça coisas incríveis; naquela tarde, ele cismou que seria capaz de tourear um daqueles animais.

Com autorização do proprietário do circo, ele se vestiu mais ou menos como um toureiro, capa vermelha, calça justa, botas, lenço no pescoço; menos espada, aquela que mata o infeliz, depois de já ter cansado.

Vários voluntários também se candidataram para as proezas; todos com algemas na cabeça e contando vantagens do arco-da-velha.

Ao ver meu pai ali num canto do quadrado da mangueira e já pronto para receber o coitado (a) eu não me contive tal foi meu desespero, que não lembro como foi que cheguei até ele e fui logo dizendo: Pai saia já daí, na esperança de convencê-la a desistir daquela maluquice toda: O sr. não vê o perigo que está correndo? Um desses bichos pode tirar sua vida ou deixá-lo inválido pro resto da vida?

-Sai daqui menino, você não vê que eu posso arrancar aplausos de toda essa gente. Mas pai o sr. já bebeu um pouco, está tonto e não vai conseguir se sair bem dessa maluquice.

-Some já daqui seu diabo, você está tirando toda minha concentração.

Voltei para junto de minhas irmãs rezando para Nossa Senhora para que nada de mal lhe acontecesse.

Nisso começou a tourada; não vi por onde a vaca entrou e para sorte do meu pai, dois palhaços que estavam ali sentados observando os trejeitos dele, viriam quando a vaca já tinha lhe dado dois tombos e receando coisa pior, arrancaram ele a trancos e barrancos, enquanto toda geral riam e zombavam dele, me deixando numa tristeza sem fim.

Agradeci a Deus, pelos palhaços terem tomado aquela atitude inesperada; pelo bem do meu pai e dos nossos também. Bendito seja esses palhaços que se tornaram anjos da guarda, disse eu em tom de sussurro.

Quando todos os espetáculos terminaram e a mangueira desmontada, ouvimos de um dos palhaços, uma voz alta e aguda a frase: todos de pé que vamos dar início ao sorteio desta boneca maravilhosa.

- E atenção, muita atenção para o sorteio. O silêncio foi total. Com uma das mãos, a outra segurava a boneca, ele tirou de uma caixa de papelão média o número do canhoto.

Atenção, atenção, dizia ele, enquanto eu sentia o meu corpo inteiro tremer; quase caí das pernas.

- O número é xxxx.

Eu olhei os números bem olhados dos nossos três bilhetinhos e gritei: é o meu, aqui, eu ganhei, a boneca é minha.

Nisso, quase em uníssono começou: é maracutaia, é roubo. Várias vezes ouvi aquele absurdo.

Não tinha sido roubo nem maracutaia. A boneca era minha por honestidade e o povão não parava com aquele infame.

O palhaço, se vendo numa situação desconfortável, disse: vou fazer novo sorteio e colocando meu bilhete no recipiente, chamou um dos adolescentes, que estava mais ou menos ali perto e mandou que tirasse um bilhete.

Após tirá-lo, entregou ao palhaço, que vendo aquele número gritou: por isto eu não esperava, é o mesmo número do anterior.

O povão não se conformou e novamente começou: é roubo, é maracutaia, é roubo, é roubo, queremos novo sorteio, novo sorteio e sei lá quantas vezes repetiram.

O palhaço falou, agora com um microfone numa das mãos: Vou buscar alguém lá de fora do circo e o número que for sorteado será o ganhador, seja o mesmo de antes ou qualquer outro.

Trouxeram um senhor bem idoso, e o palhaço perguntou: este tá bom para vocês?

Todos assentiram que sim com um movimento da cabeça.

O palhaço pediu ao senhor que por favor, retirasse um papelzinho de dentro da caixa e entregasse a ele. Num instante, aquele senhor obedeceu o palhaço e lhe entregou o bilhete.

Senhoras e senhores, isto é, por Deus, pela terceira vez o número sorteado é o mesmo número que fora sorteado anteriormente como da primeira vez. Entreguei-lhe o meu canhoto e ele se certificou da minha veracidade. Depois, sem hesitar, entregou-me aquela linda boneca que incontinente a passei para os braços da minha irmã maior, que ao senti-la junto do seu corpinho começou a chorar copiosamente de alegria. Depois abraçou-me e nossas lágrimas se misturaram formando uma só cascata.

Sorte? Coincidência? Milagre? Para Deus nada é impossível!

Esta história verídica deu-se quando era ainda uma criança e morava em São Paulo. Meu pai faleceu aos 43 anos, vítima de chagas.

João Caldeirão é leitor da FOLHA em Sertanópolis