"Você se lembra dela? Veja como está agora”
PUBLICAÇÃO
sábado, 16 de novembro de 2019
Erika Gonçalves - Grupo Folha
Ela cresceu em frente às câmeras, mas muitas pessoas ainda se assustam quando pensam em uma criança e se deparam com uma mulher adulta. A atriz Emma Watson, capa da Vogue britânica de dezembro, afirmou em entrevista na semana passada como lida com a ansiedade por estar prestes a completar 30 anos, mas o que mais chamou a atenção dos internautas não foi ela estar feliz e sim sua idade. Embora tenha feito diversos filmes desde o final da franquia de Harry Potter, parece que muita gente ainda a associa com a menininha de franjinha e cabelos rebeldes.
Em uma plataforma onde parece que o tempo nunca passa e muitas pessoas não se preocupam em ver a data da publicação do que estão lendo, o caso da atriz não é isolado. Tanto é que diversas publicações usam o chamativo título de “veja como ele/ela está agora” justamente por essa confusão de tempo que a internet é capaz de proporcionar.
A percepção de como o tempo passa é diferente para cada um de nós, mas a base de seu funcionamento é similar a todos. A psicóloga Giselli Gonçalves explica que antigamente, quando não havia relógio ou outro instrumento para medir o tempo, as pessoas se organizavam de outra maneira, tendo a natureza como referência. Era algo cíclico, não linear. Havia a chuva e depois a seca, a época de plantar e de colher, de fartura e de escassez.
“A época de fartura era associada com a colheita, com festa. A época de escassez era relacionada com o frio. Nos relacionávamos com o tempo de maneira afetiva, qualitativa. Com o progresso da civilização, o Renascimento, vamos ter a ciência moderna e uma nova forma de produzir, de conhecimento científico, vem a quantificação. Não é mais o conhecimento místico, é o racional. René Descartes propõe o método de investigação racional, o método cartesiano. Dividirmos um problema em pedaços para resolver é um resultado desse pensamento. Somos levados a pensar dentro desse modo. Concebemos o tempo assim, em linha reta, com dias iguais, tudo quantificado”, explica.
Segundo Gonçalves, embora tenhamos nos adaptado a pensar de forma linear, essa forma arcaica, qualitativa de perceber o tempo não se apaga, não deixa de ser afetiva. Por isso que a lembrança de um animal de estimação de nossa infância é tão vívida como o que comemos no dia anterior, porque tem uma enorme carga afetiva.
“Provavelmente muitas das pessoas que se surpreenderam com a idade da Emma Watson tenham visto Harry Potter durante a adolescência e vejam a personagem de forma afetiva e ela se eternizou assim. Então as pessoas se lembram dela como uma criança”, explica a psicóloga.
Infelizmente não são só as boas lembranças que perduram por esse modo. Dias muito ruins também exigem grande envolvimento afetivo e por isso temos a percepção de que eles demoram muito a passar. “É o tipo de investimento afetivo que mostra a duração de um dia. A minha percepção é o que determina o tempo”, destaca Gonçalves.
INTERNET E O TEMPO
Um fenômeno ainda recente quando pensamos em evolução humana, a internet é objeto de estudo da psicologia. “Ainda estamos tentando entender o impacto psicológico das redes sociais com suas fotos que não envelhecem. Vemos um vídeo do passado e temos a ideia de que ele ficou cristalizado. Antes precisávamos acessar um álbum, agora esse passado está muito mais fácil de ser acessado. O passado parece que não fica para trás, que está junto com o presente. Isso deve ter efeitos, ainda devem surgir coisas que não sabemos”, diz a psicóloga.
A oferta quase infinita de livros, séries, filmes, revistas e afins disponibilizados de forma digital, seja por aplicativos ou serviços de streaming também distorcem nossa percepção do tempo. Parece que sempre nos faltam horas para desfrutar de tudo que é oferecido. “Tudo isso traz efeitos colaterais, nos dá a impressão de que não conseguimos dar conta de tudo. E que temos muita coisa para fazer. Antes tínhamos limites, o homem da roça sabia que quando escurecia o trabalho tinha acabado. O WhatsApp também altera nosso ritmo, parece que sempre estamos disponíveis e nossa percepção cíclica vai ficando alterada.”
Um efeito já percebido pela psicóloga é de que a geração que nasceu inserida na tecnologia não sabe esperar, acha que tudo precisa ser imediato quanto uma busca no computador. “Eles têm o ritmo alterado pela internet. A transformação tecnológica traz urgências, vamos sendo catapultados para frente por ela”, critica.
Antes tínhamos limites, o homem da roça sabia que quando escurecia o trabalho tinha acabado. O WhatsApp também altera nosso ritmo, parece que sempre estamos disponíveis e nossa percepção cíclica vai ficando alterada.”
Crianças têm percepção temporal diferente
É justamente esse mesmo mecanismo que explica por que as crianças têm uma percepção diferente do tempo. Por serem governadas mais pelo modo afetivo do que pela lógica racional, elas encaram os adultos de 30 anos como pessoas muito velhas, por exemplo. Quanto mais adultos, mais nos afastamos do afetivo, segundo a psicóloga.
“Temos muitas preocupações com a quantificação do tempo depois de uma certa idade. A faculdade é um período onde nos relacionamos muito intensamente e nos chocamos porque é como se esses anos nunca tivessem se apagado. A rotina é algo mais mecânico, sem tanto envolvimento afetivo, por isso parece que o tempo passa mais rápido depois de uma certa idade. Talvez um pouco da dificuldade de lidar com o tempo venha também da nossa dificuldade de lidar com o passar dele, com a velhice.”
Mas quem tem o direito de esquecer ou ser esquecido?
Além da sensação de que o tempo não passa, a internet também traz a impressão de que tudo que está na rede é eterno e realmente pode ser. Fotos constrangedoras, citações em processos, são alguns dos fatos que estão na rede e que muitas pessoas gostariam de que deixassem de estar disponíveis para consulta pública. Em muitos países, inclusive, já se discute ações contra a perpetuação de informações é o chamado “direito ao esquecimento.”
O termo que teve origem na Alemanha e em abril de 2016 foi regulamentado pelo Parlamento Europeu, no Brasil não é uma lei específica, é uma construção jurisdicional que começou no âmbito penal segundo Thalles Takada, mestre em Direito e advogado que atua na área do Direito Digital. Para Takada, não há necessidade de transformar o direito ao esquecimento em uma lei em nosso território, uma vez que ele está previsto em diversas leis como na Constituição, no Código Civil, no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Marco Civil da Internet e na Lei Geral de Proteção de Dados.
No entanto, uma das grandes polêmicas quando se pensa em Direito ao Esquecimento é a linha entre proteger o direito individual e cercear a liberdade de expressão e de imprensa. Segundo Takada, o direito ao esquecimento envolve a liberdade de imprensa, mas se o alvo for uma falsa notícia, é possível o autor ter o direito de retirar esse material da internet. “É importante destacar que o direito ao esquecimento não vai inibir a publicação de notícias. O direito atua nos sites de busca, fazendo a desindexação das informações.”
O advogado explica que o direito ao esquecimento pode ser usado não somente para se retirar notícias na imprensa, mas outros tipos de publicação indevida, como fotos íntimas, por exemplo. Como normalmente buscamos informações em buscadores como Google ou Bing e não diretamente no site da publicação, o fato da informação ser desindexada resolve a questão.
Para quem tem medo que esse direito sirva de instrumento para se apagar fatos públicos relevantes, como o envolvimento de alguém em um escândalo público, o advogado explica. “Nunca vi esse direito ser aplicado a pessoas públicas, acredito que não vamos apagar algo da história com ele”, destaca.