“Na Serra da Canastra nasce o Velho Chico, olhinho d’água no Chapadão da Zagaia brotando aos borbotões. De pedra em pedra o rio menino saltita com o sorriso de quem já se sabe rio, rio-mar, Opará!”, diz o livro Balada Do Velho Chico, de Raimundo Carvalho. Opará significa ‘rio-mar’, que era como os índios Xacriabá, que moravam na região, denominavam o Rio São Francisco. Apelidado de “Rio da Unidade Nacional” pela sua extensão de 2.830 km, ele recebeu o nome do santo no dia 4 de outubro de 1501, em uma expedição de reconhecimento que desceu a costa brasileira, rente ao litoral, comandada por Gonçalo Coelho e Américo Vespúcio e vinda do Cabo de São Roque. Foi uma homenagem ao santo festejado naquele dia.
Para os sertanejos daquela região, o “Velho Chico” sempre representou alimento, por meio do peixe em suas mesas, a água e o lazer. Mas perto dali, a região conhecida como Polígono das Secas sempre sofreu com a falta de circulação de massas úmidas provocada pelo relevo interplanáltico (depressões localizadas entre planaltos). A maior parte dos rios é intermitente ou sazonal, ou seja, eles secam em determinados períodos. A grande exceção por ali é o Rio São Francisco, principal recurso hídrico da região, com suas águas caudalosas.
Todas as vezes que havia uma seca forte no Nordeste se aventou a possibilidade de construção de uma transposição do Rio São Francisco. “Esse projeto é da época do Império. O primeiro traçado foi feito ainda no Brasil Império, ou seja, tem mais de 150 anos de história”, destacou o engenheiro Francisco Jácome Sarmento, professor do departamento de engenharia civil e ambiental Universidade Federal da Paraíba, autor dos livros “Transposição do Rio São Francisco: Os bastidores da maior obra hídrica da América Latina” e também “Transposição do Rio São Francisco: Realidade e Obra a Construir.”
Em 1847, Marco Antônio Macedo, intendente do Crato (Ceará), elaborou projeto para levar a água do rio para seu estado. Treze anos mais tarde, o imperador Dom Pedro 2º defendeu a ideia da transposição, mas o projeto nunca foi implementado. “Dom Pedro deu a ordem para o engenheiro chamado Halfeld (Heinrich Wilhelm Ferdinand Halfeld, também conhecido como Henrique Guilherme Fernando Halfeld). Ele comandou expedição que percorreu o São Francisco todo fazendo esse levantamento e investigando a possibilidade de se fazer a transposição para combater seca principalmente no Ceará”, apontou Sarmento. “Na época a topografia era bem ineficiente, não é como é hoje. Foi feito um trabalho de campo pelo Halfeld, que fez um traçado que é mais ou menos o traçado do Eixo Norte da atual transposição”, destacou o professor. Mas o engenheiro Guilherme Schüch, o Barão de Capanema, ressaltou que não havia recursos técnicos para fazer com que as águas transpusessem a Chapada do Araripe, na divisa dos estados do Ceará, Piauí e Pernambuco.
Documentos históricos sob a guarda do Arquivo do Senado e do Arquivo da Câmara mostram que vários projetos de lei que previam a transposição passaram pelas mãos dos senadores e deputados do Segundo Reinado. O deputado França Leite (PB) discursou no plenário, em 1846, e disse que “Cavar e atirar a terra para os lados pouco custa. As mesmas águas que correm farão o resto. ” O deputado Venâncio de Rezende (PE) também discursou em 1852 que “Uma enxada dirigida por um homem pode levar água até o fim do mundo.”
Depois de uma seca que vitimou quase dois milhões de pessoas entre 1877 e 1879, o governo republicano providenciou um plano de um canal que interligaria os rios São Francisco ao Rio Jaguaribe. Em 1909, foi criada a Inspetoria Federal de Obras contra a Seca e, em 1920, o presidente Epitácio Pessoa realizou as primeiras obras de utilização das águas do São Francisco, com a criação de 205 açudes e 220 poços alimentados pelo rio.
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“Mas a primeira iniciativa concreta de transposição do Rio São Francisco foi apresentada em 1983 pelo ministro do Interior do Governo João Figueiredo, Mário Andreazza”, destacou Sarmento. Na ditadura militar, o ministro Mário Andreazza propôs uma transposição que incluísse os rios Parnaíba, São Francisco e Tocantins. Ele mobilizou 300 técnicos do Dnos (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas), mas a obra tampouco foi adiante.
No governo de Itamar Franco, em 1994, quando Aluizio Alves era o ministro da Integração Regional e Abelírio Vasconcelos da Rocha era o secretário nacional de Irrigação,faltavam apenas sete meses do mandato do presidente Itamar Franco. No dia 21 de dezembro daquele ano o projeto foi entregue.
Sarmento entrou no projeto no Governo Itamar e relata que do projeto de engenharia elaborado por Andreazza foi aproveitado o projeto de topografia. "A minha experiência de trabalho na transposição ao longo dos governos Itamar Franco e FHC contrastaria tanto com a que tive no governo Lula, que me leva a concluir — não sem certa tristeza — que os grandes projetos de importância para o Nordeste, para saírem do papel, exigem do líder uma identidade que é quase um tipo especial de sensibilidade humanística, apenas adquirível quando compartilha da mesma miséria, se livra, por um milagre, do determinismo social e alcança uma posição que lhe confere o poder de tentar mudar essa realidade", diz Sarmento em um de seus livros.
“Foram desenvolvidos vários estudos e alguns projetos de engenharia que foram implantados hoje. Mas na época não era um projeto de governo. Itamar e FHC nunca assumiram a transposição. Ele sempre era conduzido por um ministro que era da região e que encampava o projeto para justificar seu trabalho em seu estado, mas era um projeto de uma igrejinha em que o ministro era um dos beneficiados.”, ressaltou.
“Se continuasse como projeto de um ministério não sairia nunca do papel, pois eu via que o discurso era um e a prática era outra”, apontou. “Depois que o Lula nomeou José Alencar como comandante de uma comissão interministerial em 2003, voltei e assumi a chefia da assessoria técnica do José Alencar, que sabia da minha atuação no projeto. Vivenciei a mudança de postura do governo como um todo. Não era uma ilhazinha de interesse de um ministro. Não sou vinculado a nenhum governo, mas o que o governo Lula fez? Pegou o mesmo projeto e venceu uma série de batalhas judiciais. Havia determinação firme por parte dele”, apontou.
Ele relata que começaram a entrar com ações na justiça para sabotar a trilha legal para o projeto se concretizar e a obra só foi iniciada em 2007. Sarmento explicou que para dar início às obras o Exército Brasileiro iniciou os trabalhos, mas fez menos de 1% da obra. “Os demais trechos foram todos licitados”, apontou.
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