Muitas pessoas veem um tapa ou uma ameaça de morte como únicos sinais de um relacionamento abusivo, não dando atenção a detalhes igualmente importantes, que as fazem permanecer sofrendo na situação sem entender o abuso. Apesar da possibilidade de acontecer dentro de uma relação homoafetiva, é mais comum entre homens e mulheres, motivada geralmente pelo homem em posição de poder. Nesse caso, o relacionamento abusivo pode ficar a um passo de uma tragédia, como o feminicídio.

A violência pode se apresentar de variadas formas: sexual, financeira, moral, patrimonial e psicológica, sendo a última a mais difícil de identificar. Por isso, é comum que as vítimas acreditem não estar vivendo uma relação problemática apenas por não terem experenciado algum tipo de agressão do companheiro, mas os sinais evoluem de gravidade de forma gradativa.

De acordo com a psicóloga Tatiane F. Bussmann, a violência psicológica pode ser caracterizada por atos de desrespeito ou ameaça que despertam sentimentos de medo e insegurança na vítima. A violência moral pode agir com ataques à autoestima, difamações, críticas constantes e humilhações públicas ou privadas, em âmbito virtual ou presencial. Quando há controle financeiro ou danos aos bens da vítima, trata-se, então, de violência patrimonial. "Existem padrões comportamentais, que são sinais de violência velada que se repetem, e identificá-los pode ajudar a vítima a sair do ciclo de agressão", afirma. O abusador costuma ter a necessidade de se sentir superior no relacionamento, menosprezando a vítima e fazendo-a acreditar que precisa dele para sobreviver.

Sendo assim, o relacionamento abusivo é marcado por quatro fases. "A primeira é precedida de um período em que o abusador enaltece a vítima, fazendo e dando tudo o que ela pede, a fim de envolvê-la em uma relação de dependência. Mas logo surge uma tensão, algo que começa a incomodar, então começam as brigas, ofensas e cobranças", explica Bussmann. Segundo a profissional, a relação de abuso afeta a autoestima da vítima de forma que dificulta qualquer movimento de defesa da sua parte. É também neste período que podem surgir crises de ciúmes, ameaças e controle emocional.

Na segunda fase, o padrão de comportamento do abusador fica em evidência. "A essa altura, a vítima está confusa e vulnerável, e nem sempre consegue pedir ajuda", diz a psicóloga. Em seguida, há a fase de reconciliação, quando o agressor percebe que seu poder sobre a vítima de alguma forma está ameaçado. Com medo de perdê-la, ele se mostra arrependido e faz promessas condicionadas à reaproximação, no que a vítima cede e perdoa.

A última fase, também conhecida como "lua de mel", é marcada por um momento em que a relação parece perfeita e os problemas superados. "O abusador cumpre o prometido e fica mais disponível afetivamente para a vítima", afirma. Para Bussmann, a motivação desse comportamento não é um envolvimento amoroso, mas sim a possibilidade de imobilizar ainda mais a outra pessoa. Na tentativa de reconquistar, o agressor presenteia, elogia, surpreende positivamente a vítima e, assim, a confunde ainda mais. Após essa fase, o ciclo de abuso se fecha e recomeça a tensão, tornando a mulher cada vez mais dependente.

Segundo a profissional, é muito possível que a vítima esteja tão debilitada emocionalmente que não consiga pedir ajuda, mesmo tendo consciência parcial da violência que está vivendo. "Nesses casos, as pessoas próximas devem agir, oferecendo todo o apoio e disponibilidade para tirar a vítima dessa situação de violência. Se oferecer para a acompanhar até a delegacia, indicar um psicólogo e advogados especializados, levar ao hospital são exemplos de como ajudar", aconselha.

TUDO COMEÇA COM FLORES

N. viveu um relacionamento abusivo por um ano e meio com um homem que conheceu pela internet. Ela conta que, no início, ele era uma pessoa completamente diferente. "Era superatenciosa e carinhosa comigo, que demonstrava se importar muito, mas com o passar do tempo percebi que a atenção que me dava se transformou em manipulação total", diz.

Sobre o comportamento do ex-parceiro, ela destaca o controle que ele impunha sobre a sua vida e as tentativas frequentes de abalar a sua autoestima. "Ele ameaçava terminar comigo se eu saísse com meus amigos que ele não gostava, fazia 'piada' do meu passado enquanto solteira, me chamando literalmente de vagabunda, dizia que queria me ver durante meu horário do almoço do trabalho porque sentia que eu estava distante dele, aí me obrigava a fazer uma chamada de vídeo e a passar o horário do almoço inteiro com a câmera ligada. Hoje vejo que foi simplesmente para me monitorar e controlar se eu não estava fazendo nada de 'errado' nesse período. Pedia para eu mandar mensagem de 15 em 15 minutos para saber se eu estava 'bem' e, se eu demorasse mais de meia hora, ele já me ligava", relata.

Hoje, N. está em outro relacionamento, desta vez saudável, mas conta que demorou para conseguir se sentir confortável novamente com outra pessoa. "Eu desconfiava de tudo, de que nada era tão bom assim, mas com ajuda de terapia consegui entender que estava de autossabotando", diz.

G. tem uma história parecida. Ela conta que, por ter vivido essa experiência ainda muito nova, não entendia o que era um relacionamento abusivo porque pouco se falava sobre o assunto. "A gente ouve sobre violência doméstica e acha que é só isso", diz. No início, seu parceiro era muito carinhoso, então o comportamento possessivo era interpretado apenas como uma atitude ultrarromântica. "Ele não deixava ninguém ficar perto de mim. O tempo todo eu tinha que estar ao lado dele", conta, "se eu ficava com as minhas amigas, ele ficava desconcertado, brigava, gritava, e eu entendia como 'nossa, que fofo, ele gosta de ficar comigo', porque, na época, eu não entendia o que estava acontecendo".

Apesar de confusa, esse foi o primeiro alerta para G. A superproteção, a princípio, pode soar como um cuidado especial e uma manifestação de afeto, dificultando a compreensão da vítima e trazendo prejuízos a longo prazo. Disso, evoluiu para um comentário sobre o corpo, o cabelo ou a roupa, na tentativa de depreciá-la. "Ele falava 'olha o seu cabelo, o jeito que está' ou 'você engordou demais, acho que tem que parar de comer'", expõe, lembrando de vezes em que ele a impedia de se alimentar.

B. é outra vítima de um relacionamento abusivo, que durou aproximadamente 6 anos. Ela relembra a conduta também violenta e controladora do ex-parceiro, com violação da privacidade e ciúme excessivo. Frequentemente, ele a punia com tratamento de silêncio e afastamento, tática de desprezo com objetivo de exercer controle. De acordo com B., tudo era passível de questionamentos, fosse um simples olhar para o lado ou uma foto curtida nas redes sociais. Das brigas motivadas por isso, surgiram as agressões. B. conta que, quando levantou o dedo, no meio de uma discussão, ele o pegou e apertou com força: "quase como se fosse quebrar, essa foi a primeira vez que lembro de ele colocar a mão em mim", recorda. A segunda vez foi apertando o seu rosto enquanto gritava com ela.

N., G. e B. contam que os parceiros frequentemente recorriam à chantagem emocional para conseguir relações sexuais. "Essa, para mim, foi a pior parte, na verdade", desabafa G. O abuso sexual não está associado apenas ao estupro, diz respeito a uma situação em que a pessoa é coagida ou obrigada a fazer algo contra a sua vontade. Afinal, estar em um relacionamento não é garantia de consentimento. "Ele me chantageava tanto, perguntando se havia algo errado e dizendo que eu não era a mesma, que eu acabava cedendo. Isso me afetou porque eu passei a achar que a base de um namoro era o sexo", diz N.

Desconfiança, baixa autoestima, depressão e ansiedade são comuns após um relacionamento abusivo. Os traumas vão desde sintomas psíquicos até físicos e sexuais. "Eu acho que isso atrapalhou muito todos os meus relacionamentos seguintes, porque a gente fica insegura. Eu não consigo lidar com isso até hoje. Tive que fazer muita terapia depois desse término, quando eu entendi, 2 ou 3 anos depois", conta G.

Por ter vivido o relacionamento abusivo ainda na adolescência, G. reforça a importância de impulsionar a discussão desde cedo entre os mais jovens. "Quanto antes a gente começar a falar sobre isso, tanto com as meninas quanto com os meninos, é melhor, porque é difícil às vezes a gente entender que o abusivo ou tóxico não é só o soco, não é quando a pessoa começa a gritar, são os primeiros sinais: é te afastar dos seus amigos, é pedir para você não contar algumas coisas, é tentar mudar uma escolha sua, porque começa aí", alerta. Para N., tratar abertamente o assunto mostra para outras vítimas que elas não estão sozinhas e que devem imediatamente buscar ajuda.

NÃO SE CALE, DENUNCIE!

A mulher que vive em um relacionamento abusivo pode ligar gratuitamente para a Central de Atendimento à Mulher, no número 180. O serviço registra e encaminha denúncias de violência contra a mulher aos órgãos competentes, além de prestar escuta qualificada e dar as orientações cabíveis.

Havendo lesão corporal, vias de fato, ameaça, injúria, calúnia ou difamação, nos termos da Lei Maria da Penha, é possível denunciar pela Patrulha Maria Penha da Guarda Municipal, no Disque 153, e pela Polícia Militar, no 190, que atendem 24 horas por dia. É importante que a vítimas procurem a Delegacia da Mulher em Londrina (Rua Alm. Barroso, 107 - 1º andar) ou registrem o Boletim de Ocorrência on-line . O telefone (43) 3322-1633 recebe imagens, áudios e vídeos pelo WhatsApp.

De acordo com os dados do CAM (Centro de Referência de Atendimento à Mulher), em Londrina, somente em janeiro e fevereiro de 2023, foram atendidas 90 mulheres, sendo 63 casos novos, 22 casos recorrentes e 5 casos que não se enquadraram na tipificação de violência doméstica. Além disso, foram realizados 1.183 atendimentos especializados nos setores de acolhida (148), busca ativa (36), psicologia (248), serviço social (569) e orientação jurídica (182).

Neste período, na Casa Abrigo Canto de Dália, local de acolhimento às mulheres em situação de violência doméstica e seus dependentes, foram acolhidas 11 mulheres e 11 crianças e adolescentes. Também foram realizados 431 atendimentos especializados nos setores de psicologia (147), serviço social (218) e pedagogia (66).

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