Lá se vão quatro décadas desde que um dos resumos semanais de saúde pública do CDC (Centro para Controle de Doenças), dos Estados Unidos, apontou que cinco jovens de Los Angeles haviam sido diagnosticados com uma infecção pulmonar incomum, causada por Pneumocystis carinii (PCP). Dois deles haviam morrido. Entre a distância temporal daquele junho de 1981 e os dias de hoje, também está um conjunto de terapias e tratamentos no enfrentamento à doença que, naquela época, era considerada uma sentença de morte. “O vírus era totalmente desconhecido naquele momento, não se sabia como pará-lo. Era uma sensação de impotência desesperadora assistir um paciente sofrendo e não ter ferramentas para reverter o quadro”, recorda a infectologista Maria Adelaide Freitas, que na época era residente.

Imagem ilustrativa da imagem Os próximos 40 do HIV
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Foi também em 1981 que um empresário, que prefere ser identificado por um nome fictício para não se expor, nasceu. Vamos chamá-lo aqui de André. Quando tinha 30 anos de idade, as histórias dele e do vírus HIV se cruzaram. “Fiz exames de rotina, pedi para incluir o exame de HIV por curiosidade apenas e levei um susto quando me ligaram pedindo para repetir a coleta de sangue. No dia seguinte veio a confirmação do resultado positivo. Lembro até hoje da sensação, um desespero solitário, não sabia o que fazer. Liguei para o médico que me acalmou e indicou um infectologista. Foi um choque”, lamenta. Quando isso aconteceu, em 2011, as terapias antirretrovirais disponíveis fizeram com que ele seguisse a vida praticamente sem grandes impactos. “Meus pais tomam remédios para pressão arterial, todos os dias. Encaro como se fosse a mesma coisa comigo. Todos os dias tomo meus remédios, tive só alguns efeitos colaterais leves no início do tratamento e acredito que hoje cuido muito mais da saúde do que antes. Faço exames semestralmente, incluí exercícios físicos e hábitos mais saudáveis na vida. Não é um diagnóstico que se queira ter, mas decidi que tentaria fazer do limão uma limonada. E ter remédios à disposição hoje é uma coisa extraordinária, que permitiu essa vida normal”, observa.

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De fato, quem recebeu o diagnóstico positivo para a doença na década de 1980 não tinha muitas perspectivas. Somente em 1987, a FDA, agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, aprovou o AZT, primeira droga mais efetiva para tratar os sintomas da doença, embora ainda com fortes efeitos colaterais. Nos anos seguintes, pesquisadores conseguiram fazer uma série de avanços significativos no tratamento como, por exemplo, a adoção do coquetel antirretroviral e os tratamentos de profilaxia pré e pós-exposição, todos eles compostos por uma série de medicamentos. “As pesquisas evoluíram muito durante esses anos, temos medicamentos excepcionais. Podemos combinar esquemas específicos para cada paciente, que hoje leva uma vida absolutamente normal. E, estando com carga viral indetectável, sequer transmite o vírus”, salienta Maria Adelaide Freitas. Para se alcançar a chamada carga viral indetectável, o paciente precisa seguir o tratamento sem interrupções e falhas.

O SUS (Sistema Único de Saúde) passou a distribuir gratuitamente, desde 1990, medicamentos antirretrovirais a todas as pessoas vivendo com o vírus e que necessitam de tratamento. Hoje, também são disponibilizados gratuitamente exames laboratoriais e testes preventivos, que podem ser realizados anonimamente e detectam anticorpos contra o HIV em cerca de 30 minutos. Também está disponível a PrEP (Profilaxia Pré-Exposição), uma combinação dos medicamentos tenofovir e emtricitabina, em um único comprimido, que impede que o HIV se estabeleça e se espalhe pelo corpo. Outra arma é a PeP (Profilaxia Pós-Exposição), o uso de medicamentos antiretrovirais por pessoas após terem tido um possível contato com o vírus HIV em situações como violência sexual, relação sexual desprotegida ou acidente ocupacional. Para funcionar, a PEP deve ser iniciada logo após a exposição de risco, em até 72 horas, e tomada por 28 dias.

No entanto, se no Brasil o acesso a medicamentos profiláticos e antirretrovirais é bem organizado e acessível, a realidade é bem diferente em várias partes do mundo — mesmo em alguns países ricos. O cenário é ainda pior em nações com baixo nível de desenvolvimento socioeconômico, que enfrentam altas taxas de infecção e pouco acesso à medicação. Para esses casos, o impacto do desenvolvimento da vacina, que vem avançando exponencialmente nos últimos anos, pode transformar a realidade. “Ainda há um caminho a percorrer, já há testes em humanos. Então acredito que, no futuro, teremos mais uma aliada nessa luta”, prevê Freitas. A demora, segundo ela, reside na complexidade do vírus. “Há os subtipos, formas recombinantes que se misturam entre si. Tudo isso deixa o trabalho extremamente complexo, por isso os pesquisadores se dedicam há quatro décadas”, aponta a infectologista. É isso que explica, por exemplo, porque a vacina contra a Covid-19 está à disposição da população em tempo recorde, e a contra o HIV, ainda não.

O SARS-Cov-2, vírus que causa a Covid-19, é um tipo de coronavírus. Nos últimos 20 anos, dois organismos muito similares causaram epidemias localizadas: o SARS-Cov, que causa a SARS, e o MERS-Cov, que causa a MERS. Vacinas contra esses dois vírus já estavam em desenvolvimento. No entanto, como as duas epidemias foram contidas, os estudos perderam força, sendo retomados com a pandemia do novo coronavírus. Além disso, HIV e SARS-Cov-2 são organismos completamente diferentes, que tornam o desenvolvimento de uma vacina contra o HIV mais difícil do que um imunizante contra a Covid-19. No HIV, os antígenos importantes para se produzir resposta imune eficiente ficam escondidos na partícula viral. Outra diferença é o vírus que ataca células do sistema imune, algo que não ocorre com SARS-Cov-2. “Nosso sistema imunológico não se cura do HIV, já o sistema imunológico humano se cura da Covid-19. É uma diferença brutal entre os dois vírus. Não tem como comparar o desenvolvimento das duas vacinas”, analisa Freitas.

Atualmente, a Janssen, da farmacêutica Johnson & Johnson, está realizando dois testes de eficácia de sua candidata à vacina em humanos. Os resultados iniciais de uma delas podem ser conhecidos já no final de 2021. A vacina é feita a partir da combinação dos imunizantes Ad26.Mos4.HIV e Bivalent gp140. As duas pertencem a uma pesquisa chamada “Mosaico”, realizada ao mesmo tempo nos Estados Unidos, Espanha, Polônia, Peru, México, Argentina, Itália e Brasil. Coordenado pela Rede de Ensaios de Vacinas contra o HIV e financiado pela Janssen, o desenvolvimento desses imunizantes, associados, deve estimular uma resposta imunológica suficiente para reduzir os riscos de infecção pelo HIV.

O estudo duplo cego – em que os participantes são sorteados e divididos em dois grupos e apenas um comitê externo sabe quem recebeu placebo e quem recebeu a vacina – terá a participação total de 3.800 pessoas nos oito países. Elas vão ser avaliadas por médicos e passarão por exames antes de serem aprovadas para participar do programa. Quatro doses da vacina vão ser aplicadas, num intervalo de três meses, com acompanhamento de três em três meses e depois a cada 6 meses. Dessas, 800 pessoas serão voluntários brasileiros, distribuídos em oito centros de pesquisa nas cidades de Belo Horizonte, Manaus, Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba. Desde que o recrutamento de voluntários começou, em dezembro do ano passado, cerca de 40 pessoas já tomaram a primeira dose. O recrutamento segue aberto até julho deste ano. Os candidatos devem ter entre 18 e 60 anos de idade, e não estar infectados pelo HIV. A previsão é que o estudo dure 4 anos.

Responsável pelo estudo no Brasil, o pesquisador e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Jorge Andrade Pinto, aponta a esperança e a empolgação da equipe no trabalho. “Quando o voluntário vacinado for exposto ao vírus, nos contatos eventuais de aquisição do HIV, a expectativa é que o sistema imune esteja apto a reconhecer e eliminar o vírus antes que a infecção esteja disseminada. Esse resultado pode salvar milhões de vidas”, analisa o pesquisador.

Antes desse trabalho, outras cinco grandes pesquisas para desenvolver uma vacina foram realizadas, com duas chegando à essa mesma fase de testes. Mas a eficácia não passou de 31%. A vacina testada agora tem tecnologias mais avançadas em comparação com as anteriores. Alguns desses avanços estão sendo utilizados nas vacinas da Janssen e da Astrazeneca contra a Covid-19. É preciso observar, também, que a Profilaxia Pré-Exposição não funciona da mesma forma que uma vacina. “Quando você toma uma vacina, ela protege você por muitos anos até, dependendo do imunizante. Já a PrEP deve ser tomada todos os dias para proteger do HIV. Se você interromper o tratamento, a PrEP não funciona”, explica a infectologista Maria Adelaide Freitas.

O surgimento de uma vacina também abre caminho para, finalmente, o encontro de uma cura para a doença. “Quando se encontra uma estratégia eficiente para prevenir a infecção, há grandes chances do caminho ser aplicado na cura também. Os próximos anos são de muita esperança”, acredita Freitas. Para André, a aposta vai além da saúde. “Vai evitar que outras vidas sejam impactadas pelo vírus e, tenho certeza, imunizar contra o estigma dessa doença. O preconceito ainda é grande. São poucas pessoas do meu círculo que sabem, não me sinto à vontade. Apesar dos avanços, de toda a informação disponível, o desconhecimento é grande”, lamenta André. A infectologista concorda. “Ainda há muita desinformação e isso gera esse estigma. Uma pessoa com HIV positivo, mas carga viral indetectável, tem certeza que não transmite o vírus, vários estudos comprovaram isso ao longo dos anos. Há milhões de pessoas que nunca fizeram um teste, não sabem se são positivas ou não. Se forem, podem estar transmitindo sem saber. Então, é preciso se testar sempre. Essa atitude, os tratamentos e, quando tivermos, a vacina, vão ajudar a acabar de vez com esse vírus que já nos causou tanta tristeza nos anos 1980. Enquanto isso, o uso de camisinha e outras formas de proteção são essenciais, até para se evitar também outras doenças”, finaliza Freitas.