“Quem se entregar habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que assegure meios bastantes de subsistência, ou que prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita, pode ser preso por um período de 15 dias a três meses”. A penalidade é descrita na Lei de Contravenções Penais, assinada por Getúlio Vargas e publicada em 1941, que buscava punir a “vadiagem”. Oitenta anos depois, o termo – totalmente em desuso há décadas – voltou à cena, desta vez na Câmara de Vereadores de Londrina. Por iniciativa do vereador Claudinei Santos, o Santão (PSC), uma indicação para a criação de uma lei "antivadiagem" foi aprovada pelos parlamentares, com 11 votos favoráveis, cinco contrários e três abstenções.

Imagem ilustrativa da imagem O fim da vadiagem

No texto, cuja súmula traz textualmente a “criação da Lei Anti Vadiagem”, o edil sugere ao prefeito proibir “a alocação de qualquer mobília, como colchões, cadeiras, mesas, barracas, e semelhantes nas praças, ruas, bosques, calçadas e outros logradouros público (sic) no município de Londrina”, citando como exemplos marquises de prédios públicos e privados. Há ainda a intenção de proibir que o município repasse qualquer benefício financeiro a moradores de rua antes da realização de exames toxicológicos para detecção de substâncias psicoativas. Também condiciona o repasse de recursos à consulta da base de dados das polícias. Como justificativa, Santão apontou a “problemática de espaços públicos ocupados por usuários de drogas e desabrigados”.

A indicação é um recurso muito utilizado nas Câmaras de Vereadores. De acordo com a Constituição Federal, os legisladores não podem apresentar projetos de lei que sejam de competência do Poder Executivo. Por isso, quando têm alguma ideia que não pode ser apresentada em forma de projeto, fazem uma indicação, ou seja, uma sugestão para as prefeituras, que podem acatar ou não. Neste caso, a Prefeitura de Londrina não se pronunciou. No entanto, a SMAS (Secretaria Municipal de Assistência Social) emitiu nota rechaçando a proposta.

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“Somos um país desigual, temos uma dívida histórica com os mais vulneráveis e essa desigualdade vem se acirrando com a crise econômica que o país passa, agravada com a pandemia. Diante de um contexto complexo, não podemos recorrer a análises simplórias e soluções imediatistas”, traz o comunicado, que segue afirmando que o município tem buscado saídas para a questão da população de rua, com o propósito de devolver a dignidade “e construir uma trilha da cidadania, que tem como objetivo principal a criação de um programa transversal com inúmeras políticas públicas, que atenda com uma metodologia pautada na pedagogia da presença, desde a abordagem social, até a saída para a vida autônoma da pessoa em situação de rua, buscando atender de forma personalizada e conforme a vulnerabilidade, visando sua superação”.

Além da SMAS, Ministério Público, MNPR (Movimento Nacional da População em Situação de Rua) e outras 25 organizações repudiaram a iniciativa, que chegou até São Paulo, onde o padre Júlio Lancelotti, conhecido pelo trabalho em defesa da população de rua, criticou a proposta, chamando-a de “lei desumana”. De efeito prático, por enquanto, a indicação só conseguiu agitar as rodas de conversa. Criticada, a proposta é, segundo o especialista em Direito Constitucional, Rogério Marques, inconstitucional. “Ela fere princípios básicos do cidadão, segrega. Por isso é apenas uma indicação e, da mesma forma rápida que surgiu, será certamente esquecida e ignorada”, observa.

Para a socióloga Raquel Pires, o próprio uso do termo “vadiagem” mostra desconhecimento da realidade. “Buscar um termo totalmente anacrônico, lá da década de 1940, para ilustrar uma indicação de projeto em 2021, já mostra bem a desconexão com a realidade. E como funcionaria, na prática, essa definição de quem é o que, quem pode ficar na rua e quem não pode, quem tem direitos e quem não tem? Quem é vadio e quem não é?”, questiona a socióloga. No dicionário, “vadio” é aquele que “não possui ocupação, quem não trabalha regularmente, ocioso, quem faz algo sem empenho ou dedicação”.

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“Ou seja, o próprio dicionário mostra que, levado ao pé da letra, a rotina de muita gente poderia ser enquadrada como vadiagem. Portanto, na minha visão, sugestões assim são apenas cortina de fumaça para não se encarar um problema que é realmente grave e demanda trabalho sério e duro, difícil, cansativo para se resolver, sem reducionismos. Mas muita gente tem dificuldade de entender situações mais complexas”, lamenta Pires. Mas há quem, apesar de achar a proposta exagerada, queira uma solução para o grande número de pessoas nas ruas. “Realmente há muita gente dormindo nas calçadas, cada vez mais, e é no Brasil inteiro. Alguma coisa deve ser feita, porque em alguns casos atrapalha, mesmo. Mas acho que esse caminho aí do vereador não é o certo”, avalia a dona de casa Iracema Matias. Já o estudante Ronaldo Cerqueira demorou a acreditar na discussão. “É sério isso? Se a gente sair por aí dizendo quem faz vadiagem e quem não faz, talvez algumas figuras importantes podem não gostar do resultado, né?”, brinca. “É Londrina de novo passando vergonha”, complementa.

Para a antropóloga Maria Cristina Neves, debates assim são pouco produtivos. “Nasce da ideia de se querer uma solução para um problema, mas com foco e ação totalmente equivocados, voltados mais aos próprios interesses do que ao bem comum. Enquanto isso, quem sofre nas ruas continua sofrendo, quem tem problemas com drogas segue sofrendo, quem está incomodado com a situação segue sofrendo”, lamenta.

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Embora em desuso, a punição por “vadiagem” continuava existindo na Lei de Contravenções Penais de 1941 até setembro deste ano, quando foi revogada por decreto presidencial. Outra medida semelhante na história do Brasil foi o “Código de Menores”, criado em 1927. Nele, todos os jovens e crianças vistos como “perigosos” ou estando em perigo por abandono, carente, infrator, ocioso, em situação de rua, que apresentasse conduta antissocial, doente ou com deficiência, eram encaminhados às instituições de acolhimento. O Código saiu de cena em 1990, quando o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) passou a vigorar. Além de polêmicas, as duas proposições ferem, hoje, os Tratados Internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário.

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