Criado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, professor de História e de Ciências Políticas do Instituto Witwatersrand, em Joanesburgo, África do Sul, e na Duke University, em Durham, nos Estados Unidos, o conceito de “necropolítica” nunca esteve tão atual. Em 2003, Mbembe lançou uma tese questionando quando o Estado, por meio de um conjunto de políticas postas em prática, acaba escolhendo quem deve viver e quem deve morrer. Os estudos do camaronês foram influenciados pelas ideias do também filósofo Michel Foucault.

Ato em frente ao Congresso Nacional, com cruzes fincadas no gramado da Esplanada dos Ministérios. Manifestantes acusam o governo pelas mortes relacionadas ao Covid-19
Ato em frente ao Congresso Nacional, com cruzes fincadas no gramado da Esplanada dos Ministérios. Manifestantes acusam o governo pelas mortes relacionadas ao Covid-19 | Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

O trabalho do francês tornou-se célebre pelas reflexões sobre poder e estruturas políticas das sociedades ocidentais, desde a antiguidade até os dias de hoje. Apesar de conceitos de controle dos corpos, purificação da população e supremacia de um determinado grupo sobre outro, por exemplo, não serem um fenômeno do século XX, passaram a ser aceitas com base no poder exercido por governos e estruturas administrativas. Através do discurso do Estado, avaliava Foucault, tais práticas tornaram-se aceitáveis, mesmo causando a rejeição, expulsão e aniquilação de certos grupos. A normalização da morte de grupos mais vulneráveis, portanto, é o instrumento de poder que determina condutas e valida tais políticas.

Com base nesta ideia de que o discurso é um instrumento de poder, Mbembe se aprofundou. Seu livro “Necropolítica”, lançado no Brasil em 2018, recupera os momentos de escravidão, descolonização e da negritude, unindo o discurso de Foucault a um racismo de Estado presente nos dias atuais, o que fortaleceria as políticas de morte — ou seja, a necropolítica.

O termo vem sendo aplicado agora na análise das políticas de segurança pública do Brasil, para ilustrar um Estado que adota a política da morte, com uso ilegítimo de força e extermínio. Os alvos maiores são favelas e periferias das grandes cidades. Como prova de que está em alta, o debate chegou até à prova de redação do vestibular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um dos mais importantes do país, realizado na última semana. “As populações negra e pobre são, invariavelmente, as grandes vítimas. Tivemos recentemente inúmeros casos, até de crianças, vítimas de tiroteios, jovens e adultos desaparecidos ou assassinados cruelmente. Ano passado, em São Paulo, enquanto na periferia diversos vídeos denunciavam a violência policial em abordagens, um empresário agrediu a mulher e debochou do PM que atendeu a ocorrência, em um bairro nobre. Não foi preso, não foi agredido. A violência exposta pela obra de Mbembe infelizmente é regra em nossa sociedade, não exceção”, avalia o sociólogo Marcelo de Souza.

Além de violência das forças de segurança pública, entraram em xeque as políticas sociais durante a pandemia, com o aumento crescente das camadas mais pobres no país, e a condução equivocada na área da Saúde, que insistiu no negacionismo, aprofundando a pandemia e, possivelmente, causando mais mortes. “O auxílio emergencial só saiu do papel após grande pressão e, mesmo assim, a extrema pobreza já está crescendo, assim como o desemprego bateu recordes. A falta de apoio aos mais pobres, aliada ao negacionismo, causou muito mais mortes nas periferias das cidades, sem acesso a grandes estruturas hospitalares. O acesso às vacinas foi negado até o limite, só saindo do papel após a pressão colocada com a ação do governo de São Paulo. Ou seja, parece que tudo é feito para que mais mortes ocorram e, as principais vítimas, são pobres e negras. Os conceitos de Mbembe são claramente verificáveis na nossa sociedade”, pontua Souza, acrescentando à essa análise o desdém de décadas em relação à Educação. “O ex-ministro Abraham Weintraub, antes de deixar o cargo, disse que o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) não foi feito para atender injustiças sociais e, sim, ‘para selecionar os melhores candidatos’. Se isso, vindo da boca do então ocupante do mais alto cargo da Educação no país, não é uma admissão de necropolítica, não sei o que precisa para comprová-la”, alerta o sociólogo.

Segundo a filósofa Marta Almeida, a necropolítica não explica somente a normalização das mortes por violência que vivemos no dia a dia, mas também a permanência do estado de desigualdade, que elimina condições de mudanças futuras. “São as mortes a médio e longo prazo. Quando a educação pública não dá suporte adequado aos mais carentes, quando a saúde falha em atender quem não têm condições, é como se o direito às oportunidades de crescer e sair de um cenário de pobreza, no futuro, fosse sumariamente retirado dessas populações. E alguns ainda vem com a conversa de meritocracia. É cruel”, lamenta.

Vista aérea do cemitério Nossa Senhora Aparecida em Manaus no qual estão enterradas inúmeras das vítimas diárias de Covid-19 no Amazonas
Vista aérea do cemitério Nossa Senhora Aparecida em Manaus no qual estão enterradas inúmeras das vítimas diárias de Covid-19 no Amazonas | Foto: Michael Dantas/AFP

E ela prossegue. “Primeiro, é preciso entender que é algo de séculos, uma estrutura que resiste à mudanças. Romper com este ciclo requer, primeiro a admissão do problema, o que parcela da sociedade parece não querer, não se interessar. A partir daí, o envolvimento de todas as esferas, de toda a população entendendo que todos ganham com uma sociedade mais igual. Nos períodos em que tivemos uma melhor distribuição da renda no país, por exemplo, vimos que a economia fluiu de forma mais sustentável, o que foi bom para todos”, argumenta Almeida.

Souza concorda e complementa. “Mudar essa realidade pede investimento pesado em educação, o entendimento que políticas de distribuição de renda fazem a diferença, que é preciso lazer, é preciso cultura, é preciso que as classes mais baixas tenham oportunidades no horizonte, além, claro, de uma visão completamente diferente das políticas de segurança pública. Está tudo atrelado, são movimentos coordenados e simultâneos. Não dá pra se dissociar e, para isso, é preciso um projeto concreto de futuro e de país, com mais igualdade”, conclui o sociólogo.

Imagem ilustrativa da imagem Necropolítica em debate
| Foto: Michael Dantas/AFP

Para Marta Almeida, os movimentos antirracistas que tomaram as ruas em 2020 e o constante crescimento dos debates em relação ao tema, apresentado nos últimos anos, são provas de que há luz no fim do túnel. “O livro 'Pequeno Manual Antirracista', belíssimo e pertinente trabalho da colega e filósofa Djamila Ribeiro, esteve por semanas entre os mais vendidos. Isso é um sinal maravilhoso. Temos os jovens encarando a questão, se mobilizando, querendo fazer diferente. Então, eu tenho esperança que possamos melhorar como sociedade, reconhecendo esses sérios problemas, nos unindo para resolvê-los de forma efetiva e não paliativa, mas também tenho os pés no chão. Temos uma longa jornada e não podemos baixar a guarda. É um problema de gerações que ainda vai levar gerações para ser superado por completo. Mas podemos, sim, vivenciar muitas melhorias”, defende a filósofa.

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