Imagem ilustrativa da imagem Lindinhas: 'Esse filme é um grito de Alarme'
| Foto: Jean-Michel Papazian/ Bien ou Bien Productions

As redes sociais pegaram fogo na última semana, trazendo à tona um filme que fez sucesso, no início do ano, no Festival de Sundance, nos Estados Unidos. Escrito e dirigido pela cineasta e roteirista senegalesa-francesa Maïmouna Doucouré, “Mignonnes” – que por aqui chegou a ser chamado de “Lindinhas” – narra a história da imigrante senegalesa Amy, de 11 anos, vivida pela atriz Fathia Youssouf. Criada nas tradições religiosas da família muçulmana, a garota ouve da mãe e da tia que a mulher deve se comportar com subserviência aos homens. A mãe, inclusive, sofre com o segundo casamento do marido e pai da garota, o que é permitido pela religião delas mas incompreendido por Amy. Recém mudada para o subúrbio de Paris, ela se entusiasma com um grupo de garotas rebeldes do colégio, que dançam imitando coreografias sensuais e usam roupas curtas e saltos altos, numa clara tentativa de replicar o comportamento dos adultos. Além dos diversos dilemas típicos da idade, Amy passa a questionar os dogmas religiosos da família, contrastados com o estilo de vida das colegas de escola e a pressão dos padrões compartilhados nas redes sociais. Na tentativa de construir sua identidade e um sentimento de pertencimento a um grupo de outras adolescentes e demonstrando um sofrimento constante, ela se força a mudar, consumindo conteúdos com apelo sexual, mesmo sem ter qualquer informação sobre eles, já que esses temas são tabus no círculo em que vive, e passa a seguir novos padrões, numa busca de se sentir aceita em uma sociedade que enaltece cliques e popularidade a qualquer preço.

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| Foto: Jean-Michel Papazian-Bien ou Bien Productions

O filme, que tem classificação indicativa de 16 anos, levou o prêmio de melhor “Direção Dramática Mundial” em Sundance e foi adquirido pela Netflix, que o lançou no Brasil no último dia 09. Mas, ao montar o material de divulgação, a plataforma ignorou o pôster original, criando um novo em que Amy e as colegas surgem em poses e trajes sensuais. Além disso, a sinopse descrevia que a protagonista estava “explorando sua feminilidade em uma jornada de autoconhecimento contra as tradições de sua família”, ignorando que o filme busca justamente criticar a sexualização precoce de meninas. Soma-se aí uma conhecida fama do ser humano de se criticar antes e assistir depois – isso quando se assiste – e o resultado foi o caos. Petições para a retirada do filme se espalharam na internet, avaliações negativas derrubaram a nota da produção, mais de 200 mil tweets recomendando o cancelamento de assinaturas da Netflix foram compartilhados e até os senadores norte-americanos Ted Cruz, do Texas, e Tom Cotton, de Arkansas, ambos republicanos, resolveram entrar em cena: pediram ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos que investigasse a produção e a distribuição do filme. Em uma carta ao procurador-geral do país, William Barr, eles pediram que fosse determinado se “a Netflix, seus executivos ou os indivíduos envolvidos na filmagem e produção violaram quaisquer leis federais contra a produção e distribuição de pornografia infantil”, sem apontarem, no entanto, de que forma o filme se enquadraria como “pornografia infantil”.

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| Foto: Jean-Michel Papazian/ bien ou bien produtions

No Brasil, a polêmica foi encampada pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. “Estou brava, Brasil! Estou muito brava! É abominável uma produção como a deste filme. Meninas em posições eróticas e com roupas de dançarinas adultas. Quero deixar claro que não faremos concessões a nada que erotize ou normalize a pedofilia”, reclamou em uma rede social, sem esclarecer se assistiu o filme ou em qual momento da película estaria caracterizada uma “normalização da pedofilia”.

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| Foto: Berlinale

A cineasta conta que o roteiro foi inspirado quando observou meninas de 11 anos dançando como em clipes musicais da televisão e que queria investigar por que elas estavam imitando o comportamento adulto. “Nossas meninas notam que, quanto mais uma mulher é excessivamente sexualizada nas redes sociais, mais ela tem sucesso. As crianças apenas imitam o que veem, tentando alcançar o mesmo resultado sem entender o significado. É perigoso”, afirmou Maïmouna Doucouré. Em entrevista à revista online norte-americana Deadline, ela diz que tem recebido ameaças de morte e outros ataques depois da contestação do pôster nas redes. Afirmou também que recebeu um telefonema do copresidente da Netflix, Reed Hastings, pedindo desculpas pela escolha do cartaz, do qual a cineasta diz não ter participado. “Julgaram apenas um pôster equivocado, sem sequer assistirem o filme”, lamentou.

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Críticas sobrepõem debate

Especialistas apontam oportunidade para discussão de temas importantes no relacionamento entre sociedade e jovens

Após a repercussão negativa e a onda de críticas, a Netflix alterou materiais de divulgação e pediu desculpas à cineasta de “Mignonnes”. Mas já era tarde. A atual cultura do cancelamento, com pessoas condenando as coisas antes de entendê-las totalmente e criticando aspectos que o filme abertamente já critica, ganhou mais destaque do que os temas que o filme provoca para a discussão. “Atualmente, temos crianças se mutilando, tentativas de suicídio, sérios problemas de depressão, crises de baixa auto-estima. Um panorama seríssimo com os nossos jovens. E quando surge uma oportunidade de se debater e encarar de frente alguns desses problemas, uma parte da sociedade prefere pregar boicotes e cancelamentos. Aí a gente entende porque temos esses problemas. É mais fácil fugir do assunto do que aproveitar para realizar um grande debate sério sobre como estamos lidando com nossas crianças e adolescentes, para compreender como eles estão se sentindo no mundo de hoje”, avalia a psicóloga Maria Rita Moraes. Em uma das cenas do filme, Angelica, personagem de Médina El Aidi-Azouni, colega de escola e vizinha de Amy, chora ao falar de como os pais a rejeitam e conta sonhar em se tornar uma dançarina famosa para que eles passem a ter orgulho dela. “É possível que tenhamos pais compartilhando críticas ao filme enquanto os filhos estejam, no mesmo momento, passando por dramas psicológicos e sentimentos de rejeição semelhantes ao dessa garota”, alerta Maria Rita.

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Outras críticas apontam para a exposição dos corpos das crianças e a participação de atrizes muito jovens, o que seria, na visão dessas pessoas, um estímuo à pedofilia. A socióloga Marta Oliveira diz que compreende o ponto de vista dos críticos, mas faz outros questionamentos. “Reclamam que ‘onde já se viu pré-adolescentes fazendo esses papéis’, mas de que outra forma, dentro da dramaturgia, podemos discutir temas como esses? Quais sugestões, a participação de adultos no papel dos adolescentes? Ou não querem discutir isso no âmbito da dramaturgia? É possível. No entanto, o que vejo é que não se discute os temas centrais nas escolas, não se discute em casa e não quer se discutir nas telas. A impressão é que, definitivamente, não querem encarar e se incomodar com essas questões e buscam subterfúgios para não admitirem. Enquanto isso, o problema real está aí, na casa de milhões de pessoas, sem chance de cancelamento, e causando problemas às vezes irreversíveis no comportamento e na vida desses jovens”, pondera Marta.

A psicóloga Maria Rita tem opinião semelhante. “Talvez o roteiro pudesse ter coisas pontuais diferentes, que não abrissem margem para a interpretação equivocada de alguns setores, se é que houve, mas aí entramos em uma discussão técnica de cinema que, sinceramente, não me sinto com competência para abordar. Mas insisto que o foco, no momento, poderia ser a forma como as crianças estão sendo impactadas pelas redes sociais e pela mídia, de uma forma geral, como lidam com a pressão pela aceitação, se há espaço para conversas sobre isso em casa e na escola. Acredito que isso possa ser mais produtivo do que simplesmente xingar e ignorar a realidade”, opina Maria Rita, que afirma não se lembrar de grandes questionamentos quando o Programa Raul Gil, em 1999, na época na TV Record, promoveu um concurso chamado “Mini-Tchan”, em que crianças dublavam as músicas do grupo de pagode “É o Tchan”, utilizando figurinos semelhantes aos do componentes adultos. Em 2019, Silvio Santos causou polêmica ao colocar meninas, com idades entre 9 e 10 anos, desfilando de maiô em seu programa no SBT e recebendo notas dos jurados e da plateia. No mesmo ano, durante uma competição com famílias, o apresentador perguntou a uma garotinha se ela preferia "dinheiro, sexo ou poder". “As crianças, nesses palcos, não tinham como objetivo despertar o debate contra uma sensualização precoce. Foi simplesmente algo sem sentido, para entreter, em canal aberto, sem classificação indicativa. Essas coisas, sim, deveríamos lutar para que não aconteçam mais”, pontua.