Paris - Deve ser complicado para um estilista criar uma coleção que tenta sepultar a tristeza da pandemia de coronavírus e ver que toda a euforia foi por água abaixo com a guerra na Ucrânia. Isabel Marant, a mãe do estilo cool parisiense, se viu numa sinuca de bico.

Isabel Marant
Isabel Marant | Foto: STEPHANE DE SAKUTIN - AFP

Seu desfile na Semana de Moda de Paris, na quinta-feira (3), pretendia ser uma festa que tomaria a noite num "after party". Importou de Nova York a banda Blonde Redhead e abriu espaço para celebridades ostentarem os ombros poderosos de sua última coleção. Entre elas, estavam as atrizes brasileiras Isis Valverde e Giovana Lancellotti.

Mas o sentimento de ver o glamour festeiro cruzar o prédio na praça Colette era de que as ideias não se encaixavam nem com o clima de dúvidas sobre o futuro nem com o próprio humor da estilista.

Ela apareceu no final da apresentação trajada com um tricô tão folgadão quanto as peças que exibiu, todo bordado com a bandeira azul e amarela da Ucrânia. Na superfície, soou como protesto, mas, se lido mais a fundo, pode ser lido como desculpas.

É que Marant é uma das estilistas mais atentas ao desejo das pessoas na nova moda de luxo. A designer manteve sua função de oráculo das ruas, mas cancelou a celebração para convocar seus clientes a ajudar os ucranianos.

POUCAS INCURSÕES EM BRILHO

O show pensou o que o futuro poderia ser se o noticiário não tivesse surpreendido. Calças cargo, combinações de casacos pesados com peças levinhas e várias propostas casuais em jeans borrados levaram à passarela o "relax" arquitetado para o dia e a noite.

Havia poucas incursões em brilho. Remetiam, porém, ao estilo urbano sem muitas intervenções plásticas, na contramão do que os estilistas parisienses gostam de fazer.

Vestidos do tipo camisola se misturavam às propostas mais ousadas, como nos minivestidos com flores roxas miúdas, bem ao estilo funkeira carioca que ela adora homenagear. A micropeça era arrematada com botas de cano alto acima do joelho forradas de um glitter carnavalesco.

Já o viés esportivo que implementou em sua estética notívaga estava lá, em tops, bolsos e detalhes utilitários.

Embora haja um inegável acerto em costurar roupas reais, Marant logo deve ajustar a bússola caso o futuro breve não esteja tão dado a festas.

Desfile da Chloé
Desfile da Chloé | Foto: JULIEN DE ROSA - AFP

NOVA GERAÇÃO DE DESIGNERS

Em paralelo, é raro ver no mundo da moda de luxo um nome com origem que soe familiar ao sul do Equador. A estilista uruguaia Gabriela Hearst quebrou essa lógica ao assumir, um ano atrás, o comando criativo da grife Chloé, também destaque na quinta.

Não à toa, seu nome atraiu o grupo Richemont, dono da marca e também de Cartier e Montblanc. Além de uma bem-sucedida carreira com sua etiqueta homônima, ela representa uma nova geração de designers comprometidos com a crise climática e com soluções factíveis. Hearst é rigorosa e só topou o novo trabalho com a condição de usar materiais reciclados, fechar parceiras com comunidades de artesãos et cetera.

Na passarela montada em uma caixa de vidro no parque André Citroën, tecidos costurados em parceria com mulheres indígenas da Amazônia brasileira dividiam a atenção com tricôs suntuosos e casacos de cashmere reciclado.

O couro finíssimo vem de fazendas certificadas e explorado à exaustão porque, comparado ao "couro ecológico", essa matéria-prima animal dura mais e agride menos o ambiente. As pinturas manuais, revelam na parte da frente paisagens arrasadas pelo homem, enquanto que nas costas reluzem cores da natureza viva.

É como se a estilista avisasse sobre o futuro sombrio que aguarda o mundo sem os cuidados que ela tenta oferecer.

CARÍSSIMO

Mas os paradigmas da Chloé estão intactos. A ideia de criar uma moda clássica permanece incrustada na alfaiataria bem cortada, com longos casacos de couro cortados nas bases em ondas, e na combinação de tons terrosos e branco da grife para a elite europeia.

Fazem sentido os detalhes quase monásticos dos looks, alguns construídos com sobreposições de aventais transformados em segunda pele --afinal, a marca é uma das mais caras do mercado de luxo. É como diz aquele ditado --apesar de haver um mundo melhor e, neste caso, mais justo com o planeta, ele continua sendo caríssimo.

Receba nossas notícias direto no seu celular. Envie também suas fotos para a seção 'A cidade fala'. Adicione o WhatsApp da FOLHA por meio do número (43) 99869-0068 ou pelo link wa.me/message/6WMTNSJARGMLL1