A Justiça de Sorocaba (SP) proibiu uma estudante de cursar engenharia civil na USP (Universidade de São Paulo), no final de abril. Elisa de Oliveira Flemer, de 17 anos, conquistou o 5º lugar no curso de Engenharia Civil da Escola Politécnica por meio do Sisu (Sistema de Seleção Unificada), mas foi impedida de se matricular por ter feito homeschooling – o estudo em casa, longe do acompanhamento de uma escola. Em 2018, quando estava no primeiro ano do Ensino Médio, ela passou a estudar em casa, cerca de seis horas por dia, seguindo um método próprio. O sentimento de tédio em relação às aulas no colégio foi determinante para a decisão.

Imagem ilustrativa da imagem Homeschooling/Escola em casa = Projeto que regulamenta o ensino domiciliar avança na Câmara dos Deputados busca solucionar impasse de 26 anos
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Durante o período, a estudante foi aprovada duas vezes em uma faculdade particular, tirou nota 980 na redação do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e por meio do Sisu (Sistema de Seleção Unificada) conquistou a vaga na USP, em 2020. Mas, apesar do excelente desempenho, a matrícula não pôde ser aceita porque Flemer não tem o diploma de conclusão do Ensino Médio, já que o homeschooling não é regulamentado no Brasil. O Ministério Público foi favorável à estudante, porém a liminar foi negada pela juíza Erna Thecla Maria, que alegou que a modalidade de ensino não é prevista na legislação brasileira e, a exigência do diploma, legítima. O caso reacendeu o debate sobre o tema, que está em discussão também na Câmara dos Deputados desde 1995.

A prática começou como um movimento de reforma educacional proposto na década de 1970 por John Holt, professor e escritor norte americano, que defendia a necessidade de as escolas serem mais humanas e menos formais. Os argumentos inspiraram o surgimento dos primeiros adeptos do homeschooling nos Estados Unidos. Tempos depois, grupos de pais passaram a educar seus filhos em casa, atendendo apenas aos requisitos de apresentarem continuamente os planos de ensino domésticos aos conselhos de educação de cada região. Já na década de 1980, grupos religiosos passaram a aderir ao ensino doméstico para ensinar às crianças conteúdos escolares de acordo com seus princípios cristãos.

Segundo a Aned (Associação Nacional de Ensino Domiciliar), além dos Estados Unidos, Paraguai, Chile, Colômbia e Equador permitem o ensino domiciliar, enquanto Argentina e México ainda debatem a regulamentação. Entre os países europeus, Portugal, França, Inglaterra, Escócia, Irlanda, Itália, Suíça, Bélgica, Holanda, Noruega e Finlândia permitem a educação domiciliar. Já Espanha, Alemanha e Suécia proíbem a prática.

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No Brasil, a estimativa da Aned é que cerca de 18 mil alunos no país — 0,04% do total de estudantes brasileiros do ensino regular — utilizem a educação domiciliar atualmente. Uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), em 2018, apontou que a prática não é inconstitucional, mas vetou sua utilização em locais onde não houver uma lei de regulamentação. Os legislativos do Distrito Federal (DF), de Vitória (ES) e Cascavel (PR) aprovaram textos orientando a modalidade. Já em nível nacional, a pauta avançou na Câmara dos Deputados em abril de 2019, quando o presidente Jair Bolsonaro enviou ao Congresso o Projeto de Lei 2401/19, que trata do tema. Relatado pela deputada federal Luísa Canziani (PTB-PR), o texto passa por ajustes finais e define, entre outros pontos, que os pais que adotarem a modalidade para o ensino dos filhos precisam obrigatoriamente cumprir o currículo estabelecido pela BNCC (Base Nacional Comum Curricular), que dá as diretrizes de aprendizagem dos alunos dos Ensinos Infantil e Fundamental em cada série. Além disso, os estudantes precisarão estar matriculados em uma escola.

“Vamos resguardar o direito das crianças e regulamentar o dever das famílias. Traremos uma menção explícita para que se siga a BNCC e teremos a previsão de avaliações aos estudantes. Também vamos colocar a questão de formação para os pais e um dos responsáveis vai precisar ter, no mínimo, o ensino superior completo. Os alunos em homeschooling terão ainda vínculo com escolas, públicas ou privadas, e quem vai determinar as diretrizes gerais será o Conselho Nacional de Educação”, explica a deputada, que é londrinense.

A representante comercial Helena de Souza é uma defensora da modalidade. Mãe de Carla, de 8 anos, e de Ivan, de 6 anos, desenvolveu durante a pandemia uma rotina de estudos com os filhos, em um revezamento com o marido. Com críticas à qualidade do ensino no Brasil, ela considera que em casa consegue dar às crianças uma atenção que elas não encontram na escola. “Se eles têm alguma dificuldade, posso parar, explicar com calma, ter a certeza de que eles aprenderam. Na escola, com outros 20, 30 colegas, os professores não conseguem entregar essa personalização”, avalia. Outra vantagem, segundo ela, é a segurança dos filhos. “Aqui eu me sinto mais tranquila, estou próxima deles, não tem bullying ou outros problemas, não vão aprender coisas erradas, além de uma economia com transporte e alimentação, por exemplo”, aponta Souza.

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Já a professora Rosa Vianna, doutora em Educação, alerta para os pontos negativos do homeschooling. Segundo ela, a primeira dificuldade é a capacitação dos pais, nem sempre preparados para os desafios pedagógicos que a função exige. Vianna observa que muitos pais descobriram isso durante a pandemia, quando encontraram dificuldades em auxiliar os filhos no estudo dos conteúdos em casa. Além disso, a falta de socialização e de situações divergentes pode prejudicar o desenvolvimento dos alunos. “No ensino domiciliar, a ligação entre pais e filhos é intensa e dificilmente uma criança discorda das ideias e pontos de vista dos pais. A princípio podem achar isso positivo, que estão criando os filhos dentro de seus princípios. Mas é fundamental que a criança tenha contato com outras visões de mundo, outras realidades, para desenvolver um pensamento crítico, saber lidar com as dificuldades e as contradições que vai encontrar mundo afora”, analisa Vianna. “É uma atividade pedagógica, mas é também comportamental, psicológica, é multidisciplinar. O mundo é plural. Dar uma visão singular para os filhos não me parece sensato. Lá fora a realidade será mais difícil para eles”, complementa.

Sobre isso, a mãe de Carla e Ivan diz se preocupar e garantir que os filhos estejam em contato com outras crianças. “Tem o convívio com os amigos do condomínio, tem as atividades na igreja, tem os esportes. Então acredito que não haja problema de isolamento, não estamos vivendo em uma bolha”, defende Souza, que comemora o andamento do projeto na Câmara dos Deputados. “Traz uma segurança pra gente, tanto do ponto de vista jurídico, quanto do apoio da escola. Acredito que haja muito preconceito contra quem quer optar por esse caminho. Talvez com uma regulamentação nacional isso seja visto com outros olhos”, analisa a representante comercial.

A deputada Luísa Canziani ressalta a importância da escola, mas defende que possa haver outras opções para os pais. “A escola é um ambiente fundamental para o desenvolvimento das habilidades socioemocionais das crianças e dos adolescentes e da socialização, reconhecemos essa importância. A escola também é um ambiente em que podem ser detectados casos de violência infantil, abusos sexuais, entre outros. Sou defensora da educação, valorizo muito as escolas, o ambiente escolar, os professores e servidores. No entanto, a escola não pode ser considerada o único meio para a socialização das crianças. Ainda estamos construindo o texto, estamos colhendo sugestões. No substitutivo, inclusive, traremos a vinculação das crianças com alguma escola e vamos trazer um meio para garantir a socialização das crianças e dos adolescentes”, afirma. A expectativa é que o texto seja votado em plenário ainda neste semestre.

Para a doutora em Educação, Rosa Vianna, o governo poderia concentrar esforços em temas mais urgentes da área. “Temos inúmeros desafios, que já eram grandes antes da pandemia, e que se aprofundaram, como acesso dos alunos às tecnologias, formação de professores, as estruturas físicas das escolas, até questões como merenda e transporte escolar, entre tantos outros. No entanto, prefere-se avançar em algo que vai beneficiar um número extremamente reduzido de alunos. Acho que temos outras prioridades”, critica. Sobre o projeto em tramitação no Congresso, a doutora aponta avanços importantes. “Preciso avaliar com maior atenção, principalmente quando o texto final estiver finalizado, mas seguir a BNCC e atrelar o ensino doméstico à ligação com uma escola são pontos positivos. É preciso definir como será a avaliação dos alunos também”, argumenta.

Enquanto isso, Elisa Flemer, a estudante barrada na USP avalia as oportunidades que surgiram com a repercussão do caso. Ela ganhou uma bolsa para fazer um curso no Vale do Silício e um convite para estágio, ambos nos Estados Unidos. O convite foi feito por uma empresa que se comprometeu a custear todos os gastos da estudante durante o período do curso, que tem duração de uma semana. A empresa também ofereceu um curso online de Administração de Empresas em uma faculdade americana e convidou a estudante para fazer parte do seu grupo de estagiários.

Em outra frente, Flemer entrou com um novo pedido na Justiça para tentar garantir a vaga na USP e para que possa fazer o Encceja (Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos) ainda em 2021. O exame, aplicado pelo governo federal, oferece o certificado do Ensino Fundamental ou do Ensino Médio para jovens e adultos que não concluíram os estudos. Porém, para fazer a prova, que será aplicada em agosto, é necessário ter mais de 18 anos — idade que ela completa apenas em setembro.

Para Canziani, o exemplo mostra a necessidade de se regularizar o tema. “Durante esse período que estamos estudando o assunto, tivemos conhecimento de vários casos de adolescentes que alcançaram bons resultados em vestibulares, em universidades nacionais e de outros países, e que receberam a educação domiciliar. E esses casos são uma comprovação de que se a educação domiciliar for levada a sério os resultados são tão bons quanto se o aluno estivesse frequentando uma escola formal”, aponta a deputada. Já Vianna prega cautela. “São casos de sucesso, louváveis, mas será que todos os alunos que estiverem nesse sistema vão ter o mesmo desempenho, apoio, atenção, resultados? São exceções ou regra? Isso precisa ser analisado também, para que não se prejudique o futuro dos alunos por uma imposição ideológica dos pais”, sugere a professora.

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