Coronavírus traz novos ‘revoltados’ contra a vacina
Em diferentes proporções e contextos, rejeição contra imunizante é capítulo que se repete na história
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sábado, 09 de janeiro de 2021
Em diferentes proporções e contextos, rejeição contra imunizante é capítulo que se repete na história
Lucas Catanho - Especial para a FOLHA
A importante parcela da população que ainda se opõe à vacina contra o coronavírus traz à tona um episódio do passado conhecido como a Revolta da Vacina, que eclodiu no início do século 20 no Rio de Janeiro, então capital federal.
A historiadora Lilian Rodrigues de Oliveira Rosa explica que havia naquele momento um crescimento e um fortalecimento da ciência como base para as tomadas de decisão pública no campo da saúde e urbanização.
“A insurreição no Rio de Janeiro, em 1904, teve como pretexto imediato a campanha de vacinação em massa contra a varíola, determinada por decisão da própria Presidência da República”, relembra.
No entanto, houve uma politização do processo. “Havia uma polarização política entre jacobinos (grupos civis), florianistas (setores militares), republicanos radicais e monarquistas depostos pela República. A radicalização política só crescia. A oposição vinha se articulando para dar um golpe contra o governo e se aproveitou da reação de medo da população.”
Era um momento de crise, com muitos desempregados. Enquanto os grupos políticos disputavam posições entre si, não conseguiram perceber que havia muito mais por trás dos movimentos que desencadearam a revolta. “Era um povo pobre, explorado, discriminado, que recebia um tratamento espúrio e que desconfiava da administração pública.”
Informações falsas e manipulação: o Estopim
Tudo começou com a publicação do plano de regulamentação da aplicação da vacina obrigatória contra a varíola, em 9 de novembro de 1904. A imprensa de oposição e a oposição parlamentar insuflaram a resistência popular.
Apesar disso, havia sido comprovada cientificamente a necessidade inegável da vacinação por uma questão de saúde pública, já que havia um amplo surto epidêmico – a medida havia sido adotada com sucesso na Alemanha, na Itália e na França. “Importante dizer que a oposição não era contra a vacina em si, mas contra os métodos de vacinação, que considerava truculentos”.
Em meados de 1904, chegava a 1.800 o número de internações devido à varíola no Hospital São Sebastião, no Rio de Janeiro. A vacina, na época, consistia no líquido de pústulas de vacas doentes. E ainda corria o boato de que quem se vacinava ficava com feições bovinas.
Após um saldo total de 945 prisões, 461 deportados, 110 feridos e 30 mortos em menos de duas semanas de conflitos, o presidente da República, Rodrigues Alves, se viu obrigado a desistir da vacinação obrigatória.
No entanto, mais tarde, em 1908, quando o Rio foi atingido pela mais violenta epidemia de varíola de sua história, o povo correu para ser vacinado, em um episódio avesso à Revolta da Vacina.
Se hoje a situação não chegou à violência, é fato que já foi instalada uma guerra ideológica travada no país em torno dos imunizantes.
“Naquela época, a ciência era jovem e ainda estava se consolidando. É natural a desconfiança das pessoas com o desconhecido. Hoje, a ciência está madura e oferece todas as evidências historicamente da importância das vacinas. O medo advém da desinformação. Os governos populistas se aproveitam disso para ampliar sua margem de eleitorado”, afirma a historiadora.
A rejeição à Coronavac e xenofobia viral
Há uma rejeição clara de parte da população à CoronaVac, vacina desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac. Em Londrina, o prefeito Marcelo Belinati (PP) assinou, na terça-feira (5), o protocolo de intenções de compra da vacina, imunizante que está no centro das maiores polêmicas.
O presidente Jair Bolsonaro afirmou há meses que não compraria “vacinas chinesas”, mas recentemente o governo federal já sinalizou que irá adquirir doses desta vacina, por meio do Instituto Butantan, que fechou contrato com a Sinovac para fabricar o imunizante em solo nacional.
Parte dos argumentos dos que rejeitam a CoronaVac está no fato – fantasioso – de que “o que vem da China não dura” ou na desconfiança pelo novo coronavírus ter sido identificado inicialmente lá. Mas o fato é que a Saúde brasileira já é dependente do país asiático há muito tempo.
“Hoje os maiores produtores de matérias-primas de medicamentos são a China ou a Índia, os princípios ativos são feitos nesses países. A China é um dos países que mais registrou evolução em seu parque tecnológico nos últimos 20 anos”, destaca o infectologista Carlos Magno Castelo Branco Fortaleza, docente da Unesp (Universidade Estadual Paulista).
Até mesmo o insumo que a Fiocruz usará para produzir o imunizante desenvolvido pela britânica Astrazeneca ― a aposta principal do governo brasileiro ― é chinês.
“Questões xenófobas não se justificam. Qualquer vacina que comprovar 50% de proteção já tem capacidade de conter uma pandemia. E as vacinas que estão em fase final têm se mostrado sobretudo seguras. Quando uma delas sair, eu vou até dormir na rua de madrugada para ser vacinado logo cedo”, destacou o médico.
Mitos que assombram
As declarações mais recentes de Bolsonaro continuam auxiliando narrativas de desconfiança sobre as vacinas ― desta vez, sobre o primeiro imunizante contra a covid-19 a conseguir autorização emergencial no mundo, o da Pfizer.
O presidente criticava supostas exigências do laboratório, ao não se responsabilizar por eventuais efeitos adversos em um evento da Bahia, quando disparou: “Se você virar um jacaré, é problema seu”. E continuou: “Se você virar Super-Homem, se nascer barba em alguma mulher aí, ou algum homem começar a falar fino, eles não têm nada a ver isso. E, o que é pior, mexer no sistema imunológico das pessoas”.
Os mitos levantados pelo presidente são claramente impossíveis de acontecer, mas geram confusão, especialmente diante das notícias de efeitos adversos do imunizante da Pfizer nos EUA e no Reino Unido. Mas o que aconteceu, de fato? Quatro profissionais de saúde ― três deles com histórico de alergia grave ― apresentaram reação alérgica após tomar o imunizante. As agências reguladoras dos países então agiram rapidamente e retiraram a indicação apenas para este público, de maneira que a vacina segue sendo distribuída e aplicada.
“Vivemos nas últimas décadas uma crescente desqualificação da expertise técnica e científica por questões ideológicas, algo que foi agravado agora com a covid. Líderes populistas, como o Trump e o Bolsonaro, estão cada vez mais desacreditando os técnicos. Mesmo antes de ser presidente dos EUA, o Trump já publicava mensagens antivacina no Twitter”, declarou o infectologista.
O docente estima que hoje o percentual de brasileiros que se recusa a se vacinar contra covid varia entre 23% e 25%. “Mas parte vai se convencer da eficácia da vacina e vai se imunizar, como aconteceu com a vacina contra a gripe. Tenho uma visão otimista e acredito que só uns 10% dos brasileiros vão continuar a negar a vacina”, conclui o infectologista.
Sobre a negação à vacina, a historiadora Lilian Rosa acrescenta que o motivo maior é a desinformação. “Desta vez, gerada por pseudointelectuais e pelas mídias sociais, que esparramam fake news. Desinformação gera medo e suspeita. Mais até do que a falta de informação”, diz.
A historiadora acrescenta que vivemos hoje um momento em que crescem grupos que tentam colocar em dúvida conquistas científicas, sanitárias e educacionais já consolidadas.
“Esses grupos se escondem atrás de discursos que se assentam na liberdade individual. Mas a questão aqui é que no caso da saúde pública, como na segurança pública, por exemplo, o coletivo se sobrepõe ao individual”, conclui.