A humanidade convivendo com robôs, tecnologia reprodutiva, viagens espaciais, mais que imaginação, o futuro representado nas obras de ficção tem raízes no presente. Se em décadas anteriores a tecnologia e as mudanças nas relações humanas estiveram em foco, o que esperar do futuro das obras criadas atualmente? Este material é continuação da série Entredécadas, conjunto de reportagens da FOLHA que aborda o passado e o futuro mensalmente.

Imagem ilustrativa da imagem Carros voadores, civilização flutuante, o que 'Os Jetsons' tem em comum com 2020?
| Foto: Marco Jacobsen

Os criadores que ousaram abordar o futuro até então o analisaram em duas frentes: a evolução técnica e tecnológica e as modificações do ser humano e suas relações, como afirma Márcio Roberto do Prado, professor do departamento de Teorias Linguísticas e Literárias, da UEM (Universidade Estadual de Maringá). “Essa frente dupla também se mostrou bipartida: ora tivemos uma visão otimista, com promessas de utopias e avanços, ora tivemos a perspectiva sombria, com distopias e sofrimento”, analisa.

Entretanto, nas duas visões é possível encontrar similaridades ao momento atual. “Embora não tenhamos ainda um sistema de teleporte eficiente, submarinos são bastante comuns e a ideia de ‘ciberespaço’, proposta por Willian Gibson é hoje bem familiar”, afirma, apontando aspectos de avanço tecnológico. Mas o professor também cita as distopias em analogia aos dias de hoje. “Diante de cenários tão desafiadores do ponto de vista da convivência humana e da constante ameaça da barbárie e do autoritarismo, não causa espanto que obras como ‘Admirável Mundo Novo’ (Aldous Huxley) e ‘Farenheit 451’ (Ray Bradbury) pareçam tão atuais”, acrescenta.

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Prado não fala em previsões, assim como a professora do mestrado profissional em Educação e Tecnologia, do IFSUL (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-riograndense), Angela Bicca, explica. O futuro representado nas obras é criado a partir de características encontradas no presente, porém, mais acentuadas. “O futuro (nas obras) é constituído como o presente ampliado, intenso, com efeitos fortes relacionados a elementos do presente (...) O futuro é uma projeção, como uma luz que leva o presente para uma tela onde ele será examinado com mais detalhes”, afirma Bicca. Dessa forma, suas análises compreendem que as obras não abordam o futuro (exatamente), mas o presente (intensamente).

Em sua tese de doutorado, a pesquisadora discutiu filmes de ficção científica e focalizou como essas obras trouxeram a semelhança entre ser humano e máquina, apontando também para a questão do lixo tecnológico e lixo humano nas sociedades do futuro. Além disso, ela indica como os filmes apontaram para a substituição do disciplinamento moderno para ações sutis de controle, encontrados nos filmes: O Quinto Elemento (1997), I.A. Inteligência Artificial (2001), Minority Report - A Nova Lei (2002), Eu, Robô (2004), Filhos da Esperança (2006) e Distrito 9 (2009).

Mas o que viria a ser o futuro para os criadores atuais? A tecnologia continua a abrir espaço para novos caminhos (utópicos ou distópicos), com robôs e inteligência artificial, mas sempre acompanhado de suas consequências. “Causa menos espanto que o cenário contemporâneo tenha celebrizado distopias como ‘Jogos Vorazes’ ou a série ‘Divergente’”, menciona Prado em comparação às relações humanas atuais.

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Para ele, as distopias são exemplos bastante significativos quando se analisa o presente. “O futuro, diante de manchetes sobre destruição ambiental, negação da ciência, violência em larga escala, preconceito, retomada de discursos e ideias nazifascistas, acaba por se mostrar sombrio, e mesmo a questão especificamente tecnológica acaba por ser muitas vezes vilanizada, já que seria agente ou resultado de um processo de desumanização”. E a tendência é que isso seja representado nas artes.

Para Bicca, existem temas mais recorrentes nas obras que projetam o presente no futuro que são: “a discussão sobre o que é o humano, a hibridação entre seres humanos e as diferentes formas de tecnologia e as preocupações com a degradação da natureza”, elenca.

Tenha acesso às pesquisas realizadas pelos dois especialistas:

Márcio Roberto do Prado

- Faces da literatura contemporânea: o caso da poesia viral

Angela Dillmann Nunes Bicca

- Os filmes de ficção científica nos ensinando a viver em uma civilização cibernética

Dando vida a robôs - A escrita do futuro

Não só a temática, o próprio ato de escrever vem se aprimorando conforme novas possibilidades oferecidas pelo avanços tecnológicos. Márcio Roberto do Prado, professor do departamento de Teorias Linguísticas e Literárias, da UEM (Universidade Estadual de Maringá), comenta sobre as relações entre literatura e tecnologia.

A primeira questão está nos recursos tecnológicos que permitem novos formatos e divulgação. “São os casos da literatura eletrônica como um todo, poesia viral, as fanfics, dentre tantas outras ocorrências - sem deixar de mencionar espaços de divulgação e promoção da leitura, tal como fanpages, perfis no Twitter ou canais do Youtube”, menciona o professor.

Do outro lado, estão os diálogos com outras artes. “Assim como já ocorria com o cinema, música ou quadrinhos, as discussões sobre definições e fronteiras que encontramos ao aproximar obras literárias e, por exemplo, os games, são ricas e instigantes, mostrando como algo que nos remete a Homero ou à epopeia de Gilgamesh ainda pode ser atual e relevante”, aponta. Para os próximos anos, Prado aponta intensificação das tendências, com dinâmica transmídia e transartística.

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A literatura atual tem outros campos para explorar e já está presente nos games, inteligência artificial e chatbots, este último em debate, ao considerar sua autonomia. “Uma produção programada pode ainda sustentar a demanda de criatividade que relacionamos com a arte? Imaginando a assimilação de um texto oriundo de um chatbot a uma obra pretensamente artística, podemos nos colocar as questões: quem é o artista? Um literato que tome como seu esse discurso? O programador? O próprio chatbot? Não é uma questão simples, muito menos fácil; mas é uma questão que se coloca e da qual não podemos fugir”, afirma.

Apesar das novas possibilidades, Prado defende que um escritor continua tendo que desenvolver habilidades tradicionais, como domínio linguístico, excelência técnica, criatividade, empatia com o leitor, entre outros. Porém, se o escritor contemporâneo demonstrar proficiência em campos como a computação, sobretudo a programação, estará mais disposto a testar novas linguagens e recursos e ficará mais aberto a manter comunicação com o público leitor a partir de plataformas que permitem essa conexão.

Hyperloop
Hyperloop | Foto: Divulgação SpaceX

O professor é otimista quanto às novas perspectivas. “Ou a literatura tende a se transformar como sempre se transformou desde os aedos da Antiguidade, passando por trovadores e chegando à leitura silenciosa, ou a literatura, considerada em suas especificidades e limites, mostra-se ainda significativa em pleno século XXI, ‘apesar da concorrência’, o que apenas atesta sua força em termos artísticos, culturais e humanos”, afirma.

Neste aspecto, livros de papel continuarão a ser consumidos. “Desde um tablete de argila até um outro tablete como um iPad, muitos suportes estiveram a serviço da literatura, como o papiro ou o pergaminho. A mudança do suporte, nesse caso, não afeta, por si só, a ideia de literatura. A relação do leitor com o suporte, essa sim pode trazer consequências (não necessariamente ruins).”

O futuro criativo – e quase real – de Os Jetsons

Carros voadores, civilização flutuante, máquinas de limpeza, o que a série animada "Os Jetsons" tem em comum com a sociedade atual?

Em 1962 o mundo era muito diferente do que é agora, mesmo assim, os produtores do desenho animado Os Jetsons, dos estúdios Hanna-Barbera, conseguiram exibir pela primeira vez sua projeção de futuro cujas semelhanças já são visíveis quatro décadas antes do período imaginado – a história se passa em 2062. A obra brincou com a imaginação do público infantil, mas foi bem assertiva em alguns pontos, quando dispositivos da ficção são presentes na realidade atual.

A família do futuro é formada pelo pai George, mãe Jane, os filhos Judy e Elroy e o cachorro Astro. Apesar de as relações (pessoais e de trabalho) não sejam tão diferentes na ficção, a rotina com ajuda da tecnologia fica mais dinâmica. No apertar de botões o café da manhã está na mesa, máquinas de higiene pessoal trabalham e as pessoas sequer precisam caminhar, já vislumbrando um sedentarismo pouco explorado na história fantástica.

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No entanto, o pai continua tendo o hábito de ler o jornal, dirige o carro para levar os filhos à escola, tem trabalho e um chefe bastante exigente e chega em casa exausto. Na trama, os problemas são os mesmos, o que muda são as ferramentas para lidar com eles, estas empolgaram gerações dos anos 1960 e dos anos 1980 (quando o desenho foi relançado), público que hoje convive com diversos itens imaginados na infância. Veja o que o mundo de Os Jetsons tem em comum com a sociedade atual.

Robô de limpeza

Quem não queria ter uma Rosie em casa? Ainda que robôs-humanoides estejam por aí, a robô que limpa tudo é uma máquina complexa. Isso não quer dizer que não temos tecnologia para isso, atualmente, a Rosie é representada pela junção de diversos dispositivos.

O robô aspirador de pó que anda sozinho pela casa. Máquinas que lavam e secam louças com menos água e detergente que o modo usual; geladeiras que ajudam a controlar a alimentação, sugerem receitas e avisam sobre a falta de um produto; iluminação, fechadura, ar-condicionado, cortinas e banheiras automatizados controlados pelo smartphone; comando de voz para ligar e desligar aparelhos, enfim, a corrida tecnológica neste setor é intensa.

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Passarelas rolantes

Os personagens de Os Jetsons quase não caminhavam. Quando não estavam dentro de seus carros aéreos, alguma esteira surgia para evitar qualquer fadiga. Hoje em dia, caminhar ainda faz parte da rotina de qualquer pessoa, mas esteiras e escadas rolantes estão presentes em shoppings, estações de metrô ou aeroportos.

Carros voadores

Quando se fala em futuro, os carros voadores são itens indispensáveis pela imaginação. A família do desenho tinha o seu veículo pilotado pelo pai, George Jetson, e essa era a forma mais popular que a sociedade tinha para se deslocar, considerando que as casas eram flutuantes. O mais curioso é que o tráfego era intenso.

Embora não seja algo corriqueiro, na realidade, os protótipos existem e alguns já são vendidos por meio de uma lista de espera. Diversas empresas apostam em seus modelos que vão de carros ou motos voadores, semelhantes a pequenos helicópteros ou aviões, até drones tripulados. Vale ressaltar que a animação não chegou a projetar os veículos autônomos, que também já existem e são testados para o mercado atualmente.

Máquinas de comida

Escolher o que quer para o jantar, apertar o botão e receber o prato instantaneamente era uma possibilidade imaginada para 2062. As máquinas de venda automática existem, você coloca o dinheiro, seleciona o item e ele fica disponível, mas não é uma realidade doméstica e com pratos elaborados.

A sociedade contemporânea tenta suprir essa ausência com comidas instantâneas congeladas que dependem apenas de um forno micro-ondas ou com delivery por meio do smartphone. Fora de casa, alguns restaurantes também já adotam às telas para realização do pedido.

Videoconferência

Muitos telefonemas eram substituídos por videoconferência no universo futurístico de Os Jetsons. Seja no trabalho ou entre a família, um monitor surgia repentinamente para que as pessoas pudessem se comunicar por vídeo e áudio.

Hoje, a realidade superou a ficção. Além de videoconferência com mais de um contato, esse processo pode ser feito não só por meio de um monitor de TV, mas também por dispositivos móveis, como tablets e smartphones.

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Viagem no espaço

Dar um pulinho na lua era simples para os Jetsons. Atualmente, empresas apostam no desenvolvimento de turismo espacial levando pessoas a viajarem o espaço por puro prazer. O modelo já existe, no entanto, o valor para adquirir uma passagem ainda é muito alto e as empresas estão em fase de testes para viabilizar o negócio.

Botões para tudo

Para abrir a porta, para escolher um prato de comida, para escolher uma peça de roupa, os botões estavam presentes em todas as utilidades do dia a dia dos personagens. Hoje em dia, a internet das coisas (IoT) mostra como objetos do cotidiano são interligados à conexão com a internet para realizarem suas funções por meio de botões ou comando de voz, que, apesar de deficitário, já é uma realidade.

Leitura na tela

George Jetson gostava de ler o jornal em uma tela de LCD que descia por um buraco que se abria no teto. Jornais, revistas e livros se mantêm no modelo tradicional, mas possuem novas possibilidades de leitura em telas de computador, tablet e smartphones, além dos dispositivos desenvolvidos exclusivamente para leitura, os eReaders.

Transportes por tubos à vácuo

Era comum personagens surgirem inesperadamente por um tubo transparente, um sistema de transporte rápido e individual. O Hyperloop (https://www.spacex.com/sites/spacex/files/hyperloop_alpha-20130812.pdf) é uma proposta real do empresário bilionário Elon Musk e é testado para atingir velocidades altíssimas (1.220 km/h). A proposta é que o tubo leve passageiros em cápsulas que percorrem um tubo metálico, interligando uma cidade a outra.

Hyperloop
Hyperloop | Foto: Divulgação SpaceX

Máquinas de higiene

George acorda, é levado pela esteira rolante até o banheiro, chegando lá, a ducha é ligada automaticamente e várias escovas e mãos mecânicas surgem para realizar a higiene pessoal do personagem. Esse tipo de robô não existe na vida real, mas algumas tecnologias surgiram para auxiliar as pessoas nesse aspecto, como as escovas de dente elétricas, máquinas de barbear e os vasos sanitários tecnológicos que promovem a lavagem, secagem e ainda dão opção de temperatura da água e do assento, além de economia de água e desodorizador automático.

Carro numa maleta

Guardar objetos grandes em uma sacola parece ação de outro desenho animado, mas a bolsa do Gato Félix ainda não foi inventada. Em contrapartida, os carros dobráveis são pesquisados em universidades do exterior. Ainda que não caiba em uma maleta, o Hiriko Fold e o Earth-1 são exemplos de veículos compactos que reduzem de tamanho, mas ainda não cabem na mala.

Civilização flutuante

Na cidade dos Jetsons, todos os edifícios eram sustentados no ar por colunas, que poderiam mudar a altitude conforme alterações do clima. Casas que sobrevoam a superfície não existem, já as casas instaladas sobre as águas são comuns, tanto que há estudos sobre o desenvolvimento de cidades flutuantes como alternativa ecológica e à prova de desastres climáticos, como o projeto Oceanix City, por exemplo.

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