As reuniões de condomínio no prédio em que a analista de sistemas Géssica Campos mora há 10 anos, em São Paulo, já costumavam ser tensas. Nos últimos anos, na esteira das brigas políticas que dividiram o país, a temperatura das discussões aumentou. Mas foi com o isolamento social provocado pela pandemia que o caldo entornou de vez. Com as pessoas mais tempo em casa, questões que antes eram pontuais e de pouco atrito viraram a gota d’água de grandes confusões. “É um prédio com muitas famílias, então as crianças não foram mais para a escola e ficaram em casa. Em alguns apartamentos, era televisão ou vídeo-game com o volume nas alturas, em outros tinha vizinhos que resolveram fazer pequenas mas barulhentas obras, aí quem precisava trabalhar ou entrar em reuniões virtuais começou a reclamar com cada vez mais agressividade”, conta Campos. O grupo do prédio no WhatsApp se transformou em uma trincheira de guerra. “Acho que não teve um dia sequer sem confusão e troca de xingamentos nos últimos meses. Às vezes me sinto naqueles programas de auditório de brigas de família”, brinca a analista.

Imagem ilustrativa da imagem Acabou a paciência! Restrições da pandemia provocam aumento nos casos de confusões entre vizinhos
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Por sorte, as pendengas entre os vizinhos dela ficaram só na discussão virtual e muitas foram resolvidas pacificamente. Diferente do prédio em que o administrador de empresas Juliano Amaral, de Curitiba, vive desde 2012. “Já teve morador batendo aos gritos na porta de outro, confusão na garagem, briga com porteiro, vizinha se xingando na sacada e chegamos a ter agressão física. Foram semanas bem complicadas”, desabafa, retratando um cenário que já era de paciência no limite entre os brasileiros e que parece ter acabado de vez.

Segundo levantamento feito pela ABADI (Associação Brasileira das Administradoras de Imóveis) em agosto do ano passado, o número de reclamações entre vizinhos nos condomínios triplicou. A maior parte das queixas, 72%, está relacionada ao barulho nos apartamentos, especialmente obras. Na sequência, vem as denúncias ao descumprimento das regras de isolamento e uso de áreas comuns fechadas por determinação do síndico. E até as atividades nas janelas ou varandas dos condomínios, como churrascos que deixam cheiro e passam fumaça para outros apartamentos, além de competições de pipa entre moradores e projeção de filmes nas paredes dos condomínios, criaram atritos. “A pandemia forçou um novo comportamento das pessoas, com restrições e a necessidade de adaptação. Esse aumento no convívio acabou, em alguns casos, descambando para essas confusões, algumas até se tornando ações judiciais. Perdi a conta de quantas mensagens recebi de clientes tirando dúvidas sobre como proceder nessas situações, o que jamais havia acontecido antes”, conta a advogada Ana Rodrigues.

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A procura pelos advogados para resolver esses problemas cresceu, assim como a de psicólogos e psiquiatras para lidar com as possíveis causas dessa falta de paciência. Um estudo realizado pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e publicado pela revista científica britânica “The Lancet” apontou que os casos de depressão aumentaram 90% e o número de pessoas que relataram sintomas como crise de ansiedade e estresse agudo mais que dobrou entre os meses de março e abril de 2020. De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), o Brasil já era o primeiro no ranking internacional de países com o maior número de pessoas com transtorno de ansiedade — cerca de 18,6 milhões de brasileiros — e também o quarto com maior número de pessoas com depressão, quadro que se agravou ainda mais durante a pandemia. Entre os motivos que elevam o índice de transtornos mentais dos brasileiros está a insegurança das cidades. Dados do “Atlas da Violência”, estudo realizado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), com base nos números do Sistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde, mostram que o Brasil tem taxa de homicídio 30 vezes maior que a da Europa, trazendo medo e apreensão. Além disso, uma grande causa de sofrimento psíquico é a instabilidade financeira.

“Piorou, sem dúvida. Crises econômicas são grandes geradoras de problemas psicológicos. O medo da diminuição da renda, de perder o emprego, de não conseguir pagar aluguel, de colocar comida na mesa, de ficar com dívidas, sempre provocam sérios impactos na saúde mental. Com a pandemia, vivemos uma situação nunca antes enfrentada, gerando instabilidade e elevando os níveis de estresse. Uma das reações acaba sendo a agressividade. São consequências sérias que vamos ter que enfrentar no pós-pandemia, além de todos os outros problemas correlatos”, explica a psicóloga Inês Alves.

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Para ela, é preciso encarar isso de maneira séria, com aumento no acesso a diagnósticos e tratamentos — um contraste com a atual situação. A rede pública quase sempre é superlotada, demorada e muitas vezes precária e a cobertura dos planos de saúde para consultas com profissionais de psicologia e psiquiatria é, em muitos casos, limitada, com liberação de apenas cinco a dez sessões.

Já quem busca o atendimento privado precisa desembolsar uma quantia razoável, com sessões custando mais de R$ 150, sem contar os custos com medicamentos. “O acesso à saúde mental é quase inviável para pessoas de baixa renda. Já era um problema grave há anos e que agora piorou, com a pandemia. As políticas públicas de saúde precisam lidar com isso, porque os impactos das doenças psicológicas são sentidos em todos os outros aspectos de nossa vida. Hoje, mais de 40% dos afastamentos no trabalho são por causa de doenças mentais”, alerta.

Outros obstáculos no Brasil são o número de profissionais limitado, cerca de cinco vezes menos profissionais de saúde mental em relação aos EUA e dez vezes menos do que na Europa, além do preconceito a quem busca a ajuda de um profissional. “A pessoa ouve piadas, é chamada de fraca, de maluca, acusada de estar com frescura, de ter preguiça. E o medo desse tipo de reação causa um conflito que piora ainda mais a vida de quem está doente. É algo extremamente complexo”, analisa Alves.

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E será que o clima de divisão política que atinge o país há alguns anos se reflete na saúde mental? Para a psicóloga, é possível. “São sempre vários fatores envolvidos nessa equação. O ambiente passou de apenas divergências para conflitos agressivos, passionais. Muita gente perdeu o bom senso, a capacidade de analisar racionalmente e pensar como sociedade, como um conjunto de pessoas que podem discordar mas respeitando os demais. Quando a sociedade começa a relevar o aumento da agressividade e normalizar certos comportamentos, a situação fica preocupante”, alerta Inês Alves, que conta observar um aumento dos conflitos nos últimos anos. “Discussões no trânsito, na fila do mercado. Questões banais se tornam motivo para desfechos graves. São indícios que algo não está bem. O brasileiro está vivendo sob pressão, prestes a explodir. E se, para completar, as pessoas passam a normalizar um ambiente agressivo, o resultado é cada vez mais perigoso. A pandemia acendeu o pavio”, avalia.

Como solução, Alves aponta o diálogo e a valorização da atenção à saúde mental. “Aumentar a rede de apoio, democratizar esse acesso, desestigmatizar o tratamento. Uma pessoa com boa saúde mental tende a controlar melhor as emoções, produzir mais, entre outros aspectos positivos. Não podemos deixar a sociedade sofrer sem ajuda”, finaliza a psicóloga.