No mesmo dia em que chegava ao fim o “Big Brother Brasil”, da Rede Globo, um dos programas de maior repercussão da televisão brasileira, coincidentemente era dado o passo inicial para outra atração que, em questão de dias, tornou-se campeã de audiência: a CPI da Covid. Instalada pelo Senado Federal com o objetivo de apurar se houve falhas por parte do Governo Federal no enfrentamento da pandemia, a Comissão Parlamentar de Inquérito iniciou a fase de depoimentos e entrou rapidamente nos assuntos mais comentados do momento – e fez o número de telespectadores das transmissões ao vivo de alguns canais dispararem.

Imagem ilustrativa da imagem A nova atração: CPI da Covid-19

Entre as emissoras de TV por assinatura, a GloboNews registrou, desde a primeira semana de maio, quando passou a transmitir as sessões da CPI, um crescimento de 65% na audiência em relação ao próprio desempenho das quatro semanas anteriores. Destaque ainda para sua principal rival, a CNN Brasil, que liderou entre os canais pagos durante o depoimento de Antônio Barra Torres, presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), no dia 11. O sucesso também chegou ao YouTube: os termos “Senado Federal” e “TV Senado” alcançaram, respectivamente, o quinto e o sexto assuntos mais buscados dentro do assunto “política” na plataforma. Por lá, no canal da TV Senado, o depoimento do ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, está entre os 10 vídeos mais assistidos desde dezembro de 2010. E o recorde foi alcançado em menos de 24 horas de publicação.

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Outra mostra da grande repercussão vem do Google, onde as buscas por “TV Senado” cresceram 900% em maio, quando se compara a todo o mês de abril. Ainda segundo dados do Google Trends, o interesse por “CPI” no YouTube está em nível recorde. Desde 2008, os brasileiros não pesquisavam tanto esse termo na plataforma. Já no Twitter, “#CPIdoGenocidio”, “#CPIdaPandemia” e “#CPIdaCovid” foram alguns dos trending topics das últimas tardes, disputando espaço com outros temas pontuais das oitivas, como “Rancho Queimado”, cidade catarinense insistentemente citada pelo senador Luis Carlos Heinze (PP-RS), e “Capitã Cloroquina”, apelido dado à Secretária de Gestão do Trabalho e Educação do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, ouvida na última quarta-feira.

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“É mais uma demonstração de como o cenário político está polarizado no Brasil. Um efeito que se agravou nos últimos anos e que fica claro na época de eleições e em momentos de intenso debate, como em uma CPI. O risco é que o caráter midiático, característico da era em que vivemos, tenha mais espaço do que a apuração dos problemas que originaram a investigação”, avalia o cientista político Octavio Gonçalves.

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Alguns senadores utilizam as sessões como um espaço para discursos e posicionamentos políticos, deixando de lado os questionamentos para os depoentes. E são esses momentos, principalmente de discussão ácida entre os parlamentares, os preferidos do advogado Roberto Alves. “Eu quero ver o circo pegar fogo. Duvido que vá dar em alguma coisa concreta, alguma responsabilização de gestores públicos, então que discutam mesmo, que briguem. Isso dá uma boa mostra de como pensam os senadores, do preparo de cada um deles. Assim como no BBB, ali eles acabam mostrando quem realmente são. Ali sim é uma novela da vida real”, argumenta.

Presidente da CPI-PANDEMIA, senador Omar Aziz (PSD-AM)
Presidente da CPI-PANDEMIA, senador Omar Aziz (PSD-AM) | Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Nos grupos de Telegram, o assunto também predomina. Participante de cinco deles que debatiam os bastidores e fofocas do BBB, a nutricionista Débora Andrade conta que em todos a CPI passou a ser o tema do momento. “Começou timidamente, com uma pessoa ou outra falando, depois foi tomando corpo. A estreia de ‘No Limite’ dividiu um pouco, mas a tarde só dá CPI. É quase uma transmissão em tempo real. Você fica sem entrar, quando abre o aplicativo tem mais de 2 mil mensagens não lidas. É uma loucura”, diverte-se, lembrando da estreia do reality show “No Limite”, que voltou à grade de atrações da Rede Globo.

Senador Renan Calheiros (MDB-AL)
Senador Renan Calheiros (MDB-AL) | Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Entre os comentários, críticas e piadas que os depoimentos geram, Andrade destaca que estar por dentro dos assuntos é tão importante quanto rir das situações cômicas que as sessões causam. “A gente se diverte mas também se informa, fica sabendo o que está acontecendo. É uma maneira mais agradável de ficar ligada na política do país, principalmente neste momento que estamos vivendo”, aponta. Já o administrador de empresas Celso Marques admite que acompanha só para entender os memes. “São muito engraçados. Acho que é preciso reagir com ironia a tanto descompromisso de algumas pessoas públicas. Na média eles são bem fracos, despreparados para ocupar cargos tão importantes e os memes escancaram isso”, diverte-se.

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E por falar nos memes, a CPI traz combustível diário para uma produção incessante. Com fonte imitando a logomarca do festival “Lollapalooza”, uma agenda com as datas dos depoimentos anunciava a “CPIpalooza”, com os horários das “atrações”. Uma delas foi a passagem do ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, no dia 18, o que fez a festa da internet. O antes “falante” chanceler, famoso por confusões com a China e a criação de expressões como “comunavírus”, teve a mudança repentina de tom ironizada nas redes, principalmente após ser “atropelado” pela fala da senadora Kátia Abreu (PP-TO).

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Já durante o depoimento do ex-secretário de Comunicação, Fabio Wajngarten, no dia 12, o auge das piadas veio com a ameaça do relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), que pediu oficialmente à presidência do colegiado a prisão do depoente. “Eu vou pedir a prisão de vossa senhoria” estampou milhares de montagens que circularam velozmente. E por falar em Calheiros, o relator foi responsável por uma das pérolas durante a inquirição de Eduardo Pazuello: algumas das perguntas ao ex-ministro foram formuladas “pelos internautas”, como anunciou o alagoano. Elas vieram da caixa de respostas publicada, na véspera, nos stories do Instagram do político. A cena, jamais vista na história da política nacional, já é um dos momentos inesquecíveis da temporada. E, no dia 26, uma antiga fala da Secretária de Gestão do Trabalho e Educação do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, que disse ter visto “um pênis” na porta do Instituto Fiocruz, foi recuperada pelos senadores e rapidamente entrou para os trend topics no Twitter.

Comissões Parlamentares atravessam a história e já derrubaram importantes políticos no país
Comissões Parlamentares atravessam a história e já derrubaram importantes políticos no país

Para o cientista político Octavio Gonçalves, um dos fatores que tem contribuído para a repercussão é o tema ser mais próximo da população. “Estamos há um ano passando por uma crise sanitária que afeta a todos, então quando se fala de falta de oxigênio, as pessoas sabem do que se trata. O mesmo da falta de vacinas, do desrespeito às orientações de distanciamento e uso de máscara por parte de autoridades. É diferente de uma CPMI dos Correios, por exemplo, em que se falava de planilhas, de offshores, e tantas outras coisas mais complicadas para boa parte das pessoas. Aos desdobramentos da pandemia, todos estão mais atentos, mais informados”, explica. A nutricionista Débora Andrade concorda. “Com certeza facilita. Um ministro fala que não respondeu um e-mail com oferta de vacina. Por que não respondeu? Parece a desculpa do ‘o cachorro comeu meu trabalho, professora’. Se a explicação não faz sentido, a versão cai instantaneamente. Não é um monte de números que a gente não entende”, opina, prometendo ficar ligada dos próximos episódios da série da vida real. “O bom é que o pay-per-view é de graça”, brinca.

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Palco antigo

Comissões Parlamentares atravessam a história e já derrubaram importantes políticos no país

As CPIs surgiram na Inglaterra, entre os séculos XIV e XVII, e foram adotadas em diversos países. No Brasil, a primeira investigação feita por parlamentares foi registrada em 1826, dois anos depois da nossa primeira Constituição. Mas só em 1935, o Congresso Nacional relata a primeira comissão parlamentar de inquérito da história. Com o nome de “Comissão de Inquérito para Pesquisar as Condições de Vida dos Trabalhadores Urbanos e Agrícolas”, era formada por deputados e representantes de diversas categorias profissionais.

Ex-ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello
Ex-ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello | Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Após o golpe de 1937, Getúlio Vargas impôs uma Constituição sem prever comissões parlamentares de inquérito, que voltaram com a Constituição de 1946, realizadas tanto pela Câmara quanto pelo Senado. A ditadura militar (1964-1985) fechou o Congresso Nacional em 1966, que voltou a funcionar para aprovar, sem debates, a Constituição de 1967, que previa comissões formadas por senadores e deputados, as comissões mistas (CPMIs), inexistentes até então. Elas passaram ainda a ter um tempo determinado para funcionar. Devido ao endurecimento do Regime Militar, em 1968, as CPIs só voltaram em 1973, com apenas uma comissão na Câmara, que investigava o tráfico de drogas no País.

General Eduardo Pazuello
General Eduardo Pazuello | Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Já a Constituição de 1988 valorizou a investigação parlamentar, dando a ela poderes próprios de autoridades judiciais, como quebra de sigilos bancários, fiscais e telefônicos e até decretação de prisão. Quatro anos depois, era instalada uma das CPMIs de maior repercussão da história brasileira: a que investigou o caso PC Farias, ex-tesoureiro da campanha eleitoral do então presidente da República, Fernando Collor de Mello. No ano seguinte, outra CPI marcante: a dos Anões do Orçamento, que apurou o envolvimento de parlamentares no recebimento de propinas para incluir emendas no Orçamento e beneficiar empresas fantasmas. Como resultado, seis deputados foram cassados e dois renunciaram para não perder os direitos políticos, entre eles o baiano João Alves, que chefiava o esquema.

Ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta
Ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta | Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Em 2005, foi a vez da CPMI dos Correios parar o Brasil, apurando originalmente denúncias de corrupção nos Correios, o que culminou no chamado “escândalo do mensalão”. Dez anos depois, a CPI da Petrobras foi criada para apurar denúncias sobre desvios de recursos da estatal, originadas com a operação “Lava Jato”.

Secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, conhecida como "Capitã Cloroquina"
Secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, conhecida como "Capitã Cloroquina" | Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

“As CPIs que vieram a partir dos anos 1990 ficaram marcadas, foram importantes para a nossa democracia, tiveram grande repercussão, mas imagino que essa vai ser a mais midiática da história por uma série de fatores. As ferramentas de transmissão e divulgação são muito mais ricas que em anos anteriores e o tema é bem mais próximo da população. Então gera uma comoção e um engajamento social jamais visto. Ela é um instrumento democrático fundamental. Resta saber se vai gerar um desfecho positivo para a sociedade, com responsabilização de possíveis falhas de gestão durante a pandemia, ou se será apenas mais um entretenimento de gosto duvidoso para o país”, ressalta o cientista político Octavio Gonçalves.

Ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo
Ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo | Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Ex-secretário especial de Comunicação Social da presidência, Fábio Wajngarten
Ex-secretário especial de Comunicação Social da presidência, Fábio Wajngarten | Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado