Em tempos de busca por popularidade nas redes sociais, a preocupação com estética e a beleza ganha destaque nas prioridades do brasileiro. O país já figura em segundo lugar no ranking mundial de cirurgias plásticas, atrás apenas dos EUA. E, a ânsia de mudar sua aparência para tentar se encaixar em padrões de outras pessoas, da publicidade ou àqueles estabelecidos pela si mesmos, idealizados fora de suas características originais, têm levado algumas pessoas até o limite da transfiguração.

Procedimentos como bichectomia (cortar as bochechas para afinar o rosto), cirurgia nas pálpebras, liftings, preenchimentos do rosto com substâncias botulínicas estão entre os mais procurados segundo estudo da ISAPS (Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica e Estética). E a cada minuto surge uma nova moda, a obsessão do momento é o mewing, técnica de forçar a língua no céu da boca que teoricamente deixa o queixo mais anguloso e remodela a face para ficar mais "atraente".

Imagem ilustrativa da imagem A luta contra a imagem no espelho em tempos de redes sociais
| Foto: iStock

Esse tipo de demanda estética não surgiu agora. A professora de psicologia da Unifil, Giselli Gonçalves, exemplifica que na China antiga, as mulheres tinham que ter o pé pequeno na para caber dentro de um sapato do tamanho de uma boneca. Nos dias de hoje ela aponta que a necessidade de gerar mercado constante para a venda de produtos fomenta a insegurança das pessoas. “Cria-se uma imagem inatingível para as pessoas e nessa busca elas irão consumir produtos da indústria da beleza, da moda, remédios. Isso movimenta milhões. Mas os jovens não estão preparados para se defender desses ataques e se tornam alvos fáceis", destaca.

Segundo ela, o cuidado com a imagem não é necessariamente um problema. "É problemático também quando o sujeito não tem o menor cuidado com ela". Ela explica que ele se torna patológico quando começa a gerar sofrimento para o sujeito. "Cada caso é um caso, mas quando é vivido de forma destrutiva, em vez de facilitar a vida da pessoa torna-se um problema", aponta.

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Ela explica que a maneira que o sujeito encontra para se sentir amado e aceito e importante é se adequando aos padrões que a cultura propõe. "É mais fácil tomar dois comprimidos para ansiedade e deixar o corpo em dia, mas isso é um atalho. Não é mais fácil, porque gera subprodutos. Deixa as pessoas ansiosas, depressivas e gera fobias de toda sorte”, destaca.

“Se trabalhássemos o autoconhecimento iríamos buscar uma auto aceitação dentro da gente", destaca. Gonçalves ressalta que a construção da identidade passa por vários meandros, inclusive pela expressão corporal. "Mas quando se enfatiza só este aspecto o risco é de negligenciar outros aspectos constituintes da identidade que são tão importantes quanto, como o que gosto e o que não gosto", ressalta.

REFLEXOS DA VIDA MODERNA

O cirurgião plástico Cecin Daoud Yacoub, membro titular da SBCP (Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica), afirma que a sociedade moderna está mais exigente pela mudança dos costumes da vida moderna. "Sou do tempo em que não existia celular e rede social. Para tirar foto tinha que carregar trambolho e mandar revelar. Hoje você pode tirar mil fotos com o celular", destaca.

Com a imagem mais exposta, surgiram preocupações estéticas. Yacoub explica que existe o transtorno dismórfico corporal, em que a pessoa vê defeitos onde não há; a fobia social, em que a pessoa tem medo do que os outros vão pensar dela; o trauma pelo rompimento de uma relação, em que a culpa pela separação é atribuída à aparência; e algo similar ao TOC (transtorno obsessivo compulsivo), em que tudo precisa ser perfeitamente simétrico. "Qualquer vontade de querer se tornar bonito nem sempre é dismorfismo, que ocorre quando um sujeito reclama de algo que é pouco significante ou imaginário, geralmente relacionado a um transtorno mental", destaca. Ele explica que em muitos casos há o desconforto com a imagem, como naqueles de pessoas que possuem orelhas "de abano" ou nariz "aquilino". "Têm pessoas que não se incomodam com isso, têm as que se incomodam e têm aquelas que se incomodam depois de sofrer bullying e geram a fobia social. Nesses casos há de fato uma alteração anatômica que pode causar constrangimento social e pode levar ao trauma", ressalta. Ele explica que, dependendo do caso, uma intervenção cirúrgica pode poupar anos de bullying e necessidade de terapia, mas no caso de baixa autoestima, sem razão evidente, ele recomenda o tratamento terapêutico.

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No caso de trauma decorrente de separação, em que um indivíduo busca um procedimento estético como meio de resgate do amor perdido ou do tempo perdido e começo de nova vida, a cirurgia não proporciona o que a pessoa procura. "Aí vem a frustração. Você pode fazer o melhor trabalho do mundo, mas na hora que a pessoa vê o resultado vem a decepção", destaca. Já no caso do TOC, ele explica que a pessoa tem mania de perfeição. "A pessoa com TOC tem alta sensibilidade por simetria e quer perfeição em tudo. Ela espera que o médico ofereça isso no corpo dela, mas não há um lado esquerdo igual ao lado direito", aponta.

O cirurgião plástico também aponta a responsabilidade dos médicos. No caso do cantor Michael Jackson, Yacoub questiona até que ponto ele pediu aquele nível de transformação ou até que ponto recebeu estímulo de quem fez a cirurgia."Um médico precisa entender a real origem da queixa do paciente. Tem que entrar na história dele, caso contrário nunca vai descobrir o que o paciente tem", aponta.

OS LIMITES DO TRATAMENTO DA IMAGEM

Quem trabalha com fotografia geralmente escuta a frase dos retratados: "Melhore essa imagem, hein? Passa um Photoshop aí". O publicitário Hugo Nascimento, sócio gestor da VTCom, escola de comunicação que ministra aulas de edição e tratamento de imagens, explica que esses retoques eram interessantes, principalmente nos anos de 1990. "Só que as coisas foram fugindo do princípio da pessoa se reconhecer como ela. Quando não te reconhecem, já não é mais você ali. Aquela imagem não te representa mais. A pessoa perde algumas identidades importantes do seu corpo, de seu visual", destaca.

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Ele relata que isso ainda hoje ocorre em álbuns de formaturas. "Eles retocam tanto que às vezes aquela pinta ou aquela mancha que é tão importante e tem uma história para a família é apagada e isso se torna desagradável quando é retirada sem permissão. Tem muitos estudantes que reclamam que as avós sofrem essas alterações e nem as reconhecem nas fotos", destaca. De acordo com ele, a melhor manipulação é aquela que não é percebida. (continue na página 2)

RESPEITO PELA HISTÓRIA DO CORPO

A professora de psicologia da Unifil, Giselli Gonçalves, afirma que frequentemente pergunta a seus alunos quem está 100% satisfeito com o próprio corpo e dificilmente alguém se manifesta. " Se houvesse trabalho de autoconhecimento a gente iria ter respeito pelas nossas experiências. Iria entender o nosso corpo como resultado de nossa biografia. Iria dizer que meu corpo é assim porque tive filhos e amamentei. Ou porque trabalho com determinada atividade. O autoconhecimento faria cada um entender que a gente tem uma biografia e iria aceitar a nossa história expressa em nosso corpo", destaca. A reportagem procurou três mulheres que são um exemplo de autoestima elevada e suas histórias são motivadoras para quem briga com o espelho.

A modelo plus size Marcela Baccarin, relata que passou pelo processo de autoaceitação e não foi fácil. "Antes de ser modelo plus size era uma mulher magra e acabei ganhando peso depois que tive meu filho. Passei por um momento de cobrança de ter que voltar ao peso que tinha. Sofri com baixa autoestima e foi uma fase complicada. Sou casada e na época que dei a luz me transformei de uma mulher magra para uma gordinha. Comecei a imaginar que meu marido iria me abandonar. Eu tinha que me olhar de uma forma melhor com aquele corpo. Aí comecei a me arrumar mais, comecei a sair e tudo mudou", destaca. "Antes sofri um pouco com a cobrança para ser magra e ter corpo e peso ideal a qualquer custo. Depois eu comecei a ver que não precisava ser magra para me sentir bem e ser feliz. Comecei a trabalhar como modelo plus size há sete anos e passei a conversar com mulheres que passaram pela mesma situação. Não faço apologia à obesidade. A gente tem que ser saudável, mas não pode deixar de viver, de colocar um biquíni, de ir para a praia por causa do peso", destaca. Ela ressalta que é preciso se gostar. "Isso vale não só para as gordinhas, mas para todas as pessoas que de alguma forma foram excluídas da sociedade", ressalta.

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| Foto: Arquivo Pessoal

Até mesmo atuando no segmento plus size ela enfrentou preconceitos. "Eu era de uma agência em São Paulo e ela própria cobrava de mim para emagrecer. Na verdade me senti mal, péssima, mas acabei saindo dessa agência e vi que eu não preciso me encaixar naquilo que eles querem. O segmento quer uma mulher maior, com manequim maior, então por que tenho que ser mais magra? Por que tem essa necessidade?", declara.

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A enfermeira e estiticista Luciana Nishiyama realiza drenagem linfática no pós- operatório de cirurgias plásticas e relata que nem sempre são pessoas que realmente precisam disso. "O problema nem sempre é a imagem, são outras coisas envolvidas. Trabalho desde 2011 nesse segmento e a grande maioria diz que ficou melhor, mas não ficou como queriam. As pessoas idealizam um corpo perfeito e saem frustradas, porque buscam um corpo que não existe", aponta.

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Ela mesma é um exemplo de auto aceitação, já que possui dermatite atópica desde que era bebê, aos seis meses de idade. "A dermatite geralmente termina na adolescência, porque é uma doença autoimune (alérgica), mas no meu caso é de um tipo mais raro, bem forte", destaca. Ela mantinha as publicações de seu Instagram fechadas a seus conhecidos, mas resolveu abrir sua condição e vem publicando fotos suas com os sintomas de manchas vermelhas e feridas provocadas pelas coceiras. " A primeira foto que postei de dermatite recebi muitas visualizações e muitas mensagens. Muitas delas eram tristes, de pessoas que acharam legal a publicação, mas que declararam que não teriam coragem de fazer o mesmo. As pessoas acham que é contagioso. Com a publicação eu vi que podia ajudá-las de outra forma, mostrando como é algo comum e fazer com que as pessoas se acostumem com isso. Meu normal é assim, sou assim desde pequenininha", declarou Nishiyama. "Eu acho que a vaidade deveria não depender exclusivamente do nosso físico, mas do que a gente é. Gosto de me vestir bem, de fazer maquiagem, mas a vaidade não pode depender de ser perfeito. Perfeito ninguém é", declara.

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A psicóloga Barbarhat Sueyassu possui vitiligo e trabalha em campanhas publicitárias como modelo e publica suas fotos nas redes sociais. “Eu tive que aprender com muito tempo de terapia quando era criança, porque minha mãe tinha medo que eu ficasse muito para baixo por causa do bullying na escola. Eu tive de aprender a enxergar e construir essa autoestima. Pelas minhas redes sociais eu faço isso com mais pessoas, sejam mulheres ou homens”, destaca. Ela ressalta que as pessoas mostram só a perfeição nas redes sociais. "A gente é assim com nós mesmos. A gente quer ter um corpo perfeito”, destaca. “As pessoas julgam o que é belo baseado em números de visualizações. As pessoas estão ficando mais exigentes. Por outro lado tem o movimento contrário, que você pode ser destaque e ser bonita sendo natural, do seu jeito. Eu estou sentindo isso pelo retorno que as pessoas estão me dando”, destaca. Ela, que publica suas fotos nas redes sociais, diz que expõe essa sua vulnerabilidade dizendo que não é fácil para ela, mas faz isso para dar força a outras pessoas que possuem vitiligo. “Elas se identificam.”

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Sobre os procedimentos estéticos que algumas pessoas realizam, como os realizados pelo Ken Humano, ela afirma que ele foi muito massacrado pelas plásticas que ele fez, dizendo que é loucura. “Mas as pessoas não buscam as reais razões dele. Só jogam pedras nele sem se colocar no lugar dele. Pode ser que ele tenha transtorno de imagem, mas não procuram ajudá-lo ou entendê-lo. Pode ser que isso aconteça por conta de bullying. Eu não conheço a história dele, mas é a sociedade que nos ensina o que é ser bonito e o que não é. O que é ser aceito”, destaca. Ela explica que a autoestima é aprendida nos diversos ambientes, tanto em casa como na escola. “De que adianta ter uma família que te apoia e depois vai para outro ambiente como a escola e ser tudo ruim? É preciso ter um equilíbrio. A pessoa precisa ter a cabeça preparada para diferentes ambientes e saber que não vai ter suporte em todos os locais”, destaca. Ela orienta quem está passando por problema de bullying e baixa autoestima a procurar ajuda profissional para entender quem é no mundo e descobrir qual o seu valor.

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