Voz de uma brasileira, do Norte do Paraná, ecoa em bandas londrinenses
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domingo, 17 de março de 2019
Laís Taine
De longe ela viu o carro chegando pela estrada de chão em direção à chácara onde encontra repouso quando está em Londrina. O cachorro veio alegre antes que o sorriso largo e o caminhar leve chegassem para dar as boas-vindas. Gisele Silva de Oliveira, 37, cumprimenta a equipe deixando transparecer o vozeirão que conquistou espaço nas bandas londrinenses Mama Quilla e Bloco Bafo Quente. Foi em meio ao verde afastado da cidade que a conversa fluiu sobre samba, artes e natureza.
A música entrou muito cedo na vida da cantora. "Eu sou de Paranavaí, aqui pertinho. Vim em 2000 fazer faculdade de artes cênicas, na UEL (Universidade Estadual de Londrina)", conta. Sim, artes cênicas. Apesar de desde muito pequena ter participado do coral da igreja, o teatro também fez parte da sua vida ainda muito cedo, aos 11 anos. Aos 14, as apresentações de sarau e poesia se tornaram musicais na voz daquela que mistura as artes até no seu jeito de viver.
Expressiva nos gestos, na imposição da voz e com eloquência admirável fica fácil entender como ela consegue circular entre os departamentos de artes cênicas e música na universidade. Lá, fez amigos envolvidos no cenário musical londrinense e no mesmo ano começou a se apresentar em bares da cidade. "Comecei a trabalhar de fato com a música em novembro de 2000, era a Banda Wave com vários músicos daqui", recorda.
Em seguida veio a banda Mama Quilla, que tem 16 anos de trabalho. Em 2006 veio o Bloco Bafo Quente, que animou o Carnaval londrinense deste ano levando 25 mil pessoas a festejar no Lago Igapó. "O Bloco começou como um grupo de estudos que o Duda (Eduardo Souza) reuniu aqui na chácara para estudar percussão brasileira, eu vinha porque eu curtia, era informal, mas a coisa foi ficando tão bacana que percebeu-se que dava para virar uma banda", explica. Atualmente são 20 músicos que se intercalam para se apresentar com o grupo.
FAMÍLIA
"Meu pai disse: 'filha, por que você não presta para outro curso?'", ri com a lembrança na fase pré-vestibular. Apesar da sugestão, a família a apoiou nas escolhas, participando de ensaios e espetáculos desde a adolescência. "Eles gostariam que eu tivesse feito outras escolhas dado o que é a nossa profissão no nosso país e como ela é reconhecida. Mas eu sabia daquilo que queria, a minha felicidade não estava empregada no valor ou na expectativa de fama, eu já tinha uma história de palco, de teatro", afirma.
Mas sempre há algo de inexplicável entre as gerações. A vocalista conta que achava que a família não era das artes até ter uma conversa sobre samba com o avô. "Ganhei meu primeiro violão do meu avô, ele tocava serestas e modas de viola. Bem depois, quando ele já sabia dos nossos trabalhos musicais em Londrina, começou a cantar vários sambas antigos que eu desconhecia e que eram do repertório e do gosto dele. Não sabia que meu avô gostava de samba", e menciona também uma tia que lhe deu um violão que ficou guardado durante anos esperando que alguém o tocasse. "Então percebi que tinha várias raízes e que elas vão saindo da terra conforme o universo vai se apresentando e depois você vai entendendo e descobrindo", afirma.
SAMBA
Oliveira vem descobrindo sua própria brasilidade, da qual se orgulha e representa com tanta facilidade. Mais ainda, é possível enxergar o Brasil na sua forma de falar, gesticular e sorrir, como bom brasileiro. De sandália rasteira, vestido longo e confortável, a cantora mostra que gosta mesmo é da beleza da simplicidade. Com um pandeiro na mão se diverte ao fazer samba. "Eu gosto de um remelexo, sabe? Eu gosto de música agitada ou aquela bem para trás, na fossa, que te bota reflexiva. Mas o batuque faz alegria, agito, o samba faz isso. Eu sou uma brasileira Silva de Oliveira, vem assim no nome", brinca com o próprio sobrenome.
Samba que ela ajudou a semear nas terras vermelhas do Norte do Paraná. "O samba em Londrina tomou uma dimensão bem grande, quando a gente começou o movimento era pequeno, hoje a gente vê que tem grandes festas de samba consolidadas. Samba da Madrugada, o Quizomba, que não é só de samba, mas que trouxe muito de música brasileira, o Samba da Padaria", indica. Oliveira também menciona os vários grupos de samba, tantos nomes que ela promete - e cumpre - passar uma lista para não ser injusta.
Músicas que traduzem a personalidade, como a música O Boto, de Tom Jobim: "Na praia de dentro tem areia, na praia de forte tem o mar, um boto casado com sereia, navega num rio pelo mar", diz a letra. A vocalista é casada com o músico Eduardo (Duda) de Souza, responsável pelos estudos de percussão que originaram o Bloco Bafo Quente. Os dois mudaram-se em 2015 para Garopaba, em Santa Catarina, vivendo entre mar e rio, como diz a música. "Eu e Duda estamos nesse encontro das águas doces com as águas do mar, na praia de dentro, na praia de fora... E tudo é muito musical no próprio estar e ser natureza, o som dos pássaros, do vento, das águas, dos bichos... Somos!", acrescenta.
VAI E VEM
Entre mar e rio, Londrina e Garopaba, música e locação para temporada. Oliveira recebeu convite para trabalhar em uma empresa de aluguel de imóveis de temporada e aceitou, considerando viver entre a natureza do rio e do mar de uma forma simples e ainda ter autonomia para continuar com os projetos musicais. "A gente gosta muito de natureza, rio Tibagi, cachoeiras de Tamarana e, como o Duda surfa, a gente conheceu a cidade e ficamos com planos de morar em um lugar como aquele, que tivesse um visual maravilhoso, natureza e vida simples", afirma. De lá fazem o corredor cultural, trazem músicos de lá e pretendem levar de cá para lá, estendendo a atuação.
MULHER
A vocalista é a única mulher entre os 20 integrantes do Bloco Bafo Quente, mas não acredita que seja um cenário de escassez, apontando as muitas mulheres que ela admira e que estão fazendo ótimos trabalhos no cenário musical londrinense. "Acho que as pessoas precisam conhecer mais o que a gente tem aqui, nós temos muitas cantoras, não só no universo do samba. Se você olhar dentro do Bafo Quente, é uma mulher no meio de 19 homens, mas se vasculhar mais o universo artístico de Londrina vai ver que há muitas mulheres e muitas que encabeçam as bandas", indica.
Sempre soube lidar com essa convivência masculina. "Sou bem altiva, feminista, não pelo momento de agora, desde sempre. Sempre fiz questão de me posicionar, isso nunca foi um problema, aliás, foi sempre uma coisa muito bacana essa interação com eles e no momento que eu achava que tava um pouquinho demais eu já falava: 'ô, galera! Eu tô aqui!'", abre os braços encenando o momento e ri.
É porque não é só a voz que é forte, a mulher também é. Para sobreviver da arte, sempre trabalhou muito e com amor. "A gente sempre está enfrentando as demandas culturais do momento político do nosso país, há momentos em que há mais facilidade e momentos em que há muitas dificuldades e é mesmo por muita vontade que a gente continua. É por isso que ninguém consegue sobreviver de um trabalho só", aponta ela ressaltando que muitos músicos acabam entrando em vários projetos.
Ela mesma faz dessa forma, além de outros projetos que ainda participa, também atuou nos Sambulantes, foi vendedora de loja, estagiária na Divisão de Artes Cênicas da UEL e trabalhou na equipe pedagógica de oito edições do FIML (Festival Internacional de Música de Londrina). Apesar de reconhecer as dificuldades, não há marcas de arrependimento. O trabalho é pesado, de idas e voltas, mas é muito sorriso estampado no rosto e samba no pé. A brasilidade expressiva da mulher forte em cada tom e em cada gesto.