“Ou eu faço alguma coisa diferente (no restaurante) ou não sou ninguém aqui”, diz Ester Leme, 36, que vive em Barcelona há 13 anos
“Ou eu faço alguma coisa diferente (no restaurante) ou não sou ninguém aqui”, diz Ester Leme, 36, que vive em Barcelona há 13 anos | Foto: Arquivo pessoal

“Hoy es sábado! Dia de #feijoada em Beam”. A legenda em espanhol no post do Instagram apresenta o prato brasileiro do Restaurante Beam, em Barcelona. Lá, Brasil, México e Itália se encontram por meio das mãos da chef Ester Leme, 36. Ela saiu de Londrina para estudar cozinha com intuito de dar continuidade à profissão que exercia aqui no Norte do Paraná. Treze anos se passaram, com o estabelecimento em crescimento, a nutricionista e chef de cozinha não pensa mais em voltar.

Os pratos levam a fusão da cozinha mexicana, brasileira e italiana, oferecendo desde açaí na tigela para um brunch, como tacos e tortillas no menu. “A gente tinha vontade de fazer coisas diferentes, inovar um pouco mais, colocar coisas brasileiras e mexicanas. É uma mistura”, explica Leme. A ideia veio depois de algum tempo trabalhando em restaurantes na nova cidade.

Para se diferenciar em local onde a gastronomia tem forte poder foi preciso unir forças. O restaurante conta com o mexicano German Herrera e o italiano Angelo Bianchi, sócio e marido. “Realmente é muito difícil competir com quem está aqui consolidado. Eu estou em um bairro que é repleto de restaurantes, em um raio de dois quilômetros há seis restaurantes com estrelas Michelin, entende? Então ou eu faço alguma coisa diferente ou não sou ninguém aqui”, afirma com modéstia.

A mistura atrai, mas não seria suficiente se não houvesse qualidade. Os pratos são bastante inovadores, bonitos, coloridos e envolve a cultura de cada país em um ambiente convidativamente latino. “A gente cuida muito da decoração, do serviço e faz coworking com um pintor belga Philippe Boonen, temos uma selva brasileira pintada na parede, ele faz exposições de quadros aqui, a gente move muito a parte artística”, afirma. A aproximação com o cliente, os conhecendo e os chamando pelo nome, também faz parte do carisma brasileiro que conquista os clientes fixos na cidade.

MUDANÇA

Ester nasceu e cresceu em Londrina, formou-se em nutrição e trabalhou para empresa de alimentação que atendia indústrias. “Eu era responsável por contratar e treinar funcionários e, claro, em nutrição a gente olha muito o controle de qualidade sanitário, mas na prática se descobre que para o cliente o que importa é a comida estar boa, então eu falei para meu chefe: 'para fazer o trabalho que está me pedindo eu preciso estudar cozinha para eu ser completa'”. Dessa necessidade surgiu a ideia de ir para Barcelona estudar um ano de gastronomia mediterrânea na escola Hoffman.

A promessa de voltar para dar continuidade ao que fazia na cidade natal não foi cumprida, proposta que hoje ela conta rindo, porque depois de ir para a Espanha e começar a trabalhar em restaurantes, os planos mudaram totalmente. “Eu gostei muito mais do que eu imaginava, nunca pensei em ser chef, eu queria ser melhor no controle de qualidade, mas quando comecei a trabalhar com isso eu me apaixonei, comecei a ser feliz realmente, me senti muito mais realizada como cozinheira do que como nutricionista”, revela.

FAMÍLIA

A família ainda vive em Londrina, mas se veem com frequência. Lá, a chef se casou com um amigo de um antigo chefe, os dois se conheceram quando ela estava no segundo ano no País. Ele, italiano, apaixonado por cozinha, também é dono de outro restaurante com estilo de bistrô francês, tradicional. Dessa união vieram duas meninas: Alba, 8, e Iris, 4, que dizem adorar o Brasil.

As visitas ao Brasil não são tão frequentes, mas sempre dá um jeito de estar perto da família e amigos. Quando responde que não pensa em voltar, é interrompida pelo marido que fala ao fundo: “Nunca se sabe, hein, nunca se sabe”, arrancando risos.

“Nunca digo nunca, não sei o dia de amanhã, mas no momento não penso em voltar ao Brasil. Tenho uma dívida com meu antigo chefe, é verdade, mas trabalhar como nutricionista acho que não vai rolar mais, da cozinha ninguém me tira, se ele quiser uma chef de cozinha até pode ser”, brinca.

CULTURA

Há 13 anos estabelecida no País, Ester fala com sotaque espanhol, mas não sabe catalão, língua mais falada por lá. “Nunca foi um problema, eu entendo, meus vizinhos só falam comigo em catalão, eu não falo, falo muito bem espanhol”, comenta.

As diferenças culturais que causavam um pouco de estranhamento no início já não fazem mais tanto alarde. “Eles são mais fechados. Nos primeiros anos eu estranhava, eles são secos para nossa cultura, para brasileiros algumas pessoas chegam a ser grosseiras. Hoje em dia não é mais problema, começo a ver o lado positivo disso, você começa a apreciar a maneira mais sincera, mais clara”, afirma.

Se ela acabou ganhando um pouco os trejeitos espanhóis, não confirma. “De jeito nenhum, não perdi meu jeito brincalhão e quando percebo que estou perdendo, corro atrás, às vezes brinco que eu tenho que voltar para encontrar eu mesma, porque fiquei seis anos sem ir para o Brasil e chega uma hora que você começa a esquecer quem você é, sua essência, o dia que eu perder isso, perco também minha identidade”, defende.

Em janeiro deste ano, Ester esteve na terra natal matando a saudade do que mais lhe faz falta. “Eu sinto muito a falta da minha família, dos meus amigos, da maneira de ser dos brasileiros, essa positividade, maneira positiva de ver a vida. Da comida também, por mais que eu faça aqui o arroz e o feijão, do jeito que é feito em casa no Brasil ninguém faz, não fica igual”, brinca. Com um jeito brincalhão de conversar, rir, mostrando carisma, fala que não pretende perder sua brasilidade nunca. “Aqui eles também gostam. Um sorriso na cara e um bom dia não fazem mal a ninguém”, argumenta.

DESAFIOS

Mas nem tudo são flores. Barcelona está passando por um momento delicado, em que turistas recebem a indicação de passar longe da cidade, prejudicando também o comércio. “Eu abri o negócio no olho do furacão. Eu abri o restaurante há dois anos e meio e no primeiro ano teve uma atentado terrorista, em seguida teve a declaração unilateral de independência da Catalunha e, junto com isso, tem um movimento isolado aqui que eles falam de turismofobia, em que pessoas mais velhas, que nasceram em uma Barcelona mais tranquila, viram um volume grande de turista chegar depois das Olimpíadas, eles sentem que isso tirou a paz deles”, explica.

A cidade que vive do turismo viu os viajantes optando por outros locais, já que os meios de comunicação recomendaram evitar o local por algum tempo. “Barcelona foi muito afetada por isso, o volume de turista diminuiu muito e, obviamente, diminuiu também o volume de gente que passa pela porta do restaurante diariamente”, conta.

Apesar das dificuldades, orgulha-se que entre esse turbilhão o estabelecimento se mantém quando muitos outros consolidados tiveram que fechar as portas. “Poderia ser melhor se a situação fosse diferente, mas a gente está firme e forte, estamos melhorando. É uma luta diária, conquistar um cliente por dia, fixos, da região, turistas que colocam comentários bacanas no TripAdvisor, turista recomendado por outro turista, sabe? É um grãozinho de areia a cada dia”, menciona.