“É uma doença que afeta pessoas de baixa renda, uma doença negligenciada, ninguém toma nas mãos e levanta essa bandeira. Somos poucos hansenólogos”, lamenta  Laila de Laguiche
“É uma doença que afeta pessoas de baixa renda, uma doença negligenciada, ninguém toma nas mãos e levanta essa bandeira. Somos poucos hansenólogos”, lamenta Laila de Laguiche | Foto: Divulgação

Apesar de ser uma doença bastante antiga, ainda hoje a hanseníase atinge muitas pessoas. O Brasil está abaixo apenas da Índia quando se fala em número de casos no mundo todo. Apesar do tratamento gratuito, o diagnóstico ainda é tardio e muitos pacientes acabam perdendo a sensibilidade dos membros e até sofrendo amputações. Buscando atender o maior número de pessoas, a dermatologista e hansenologista Laila de Laguiche fundou há seis meses o Instituto Aliança contra Hanseníase, em Curitiba.

Paulistana, filha de libaneses, ela conta que seu pai foi o primeiro brasileiro na família El Kadre. “Meus quatro avós e minha mãe eram libaneses. Aos 14 anos me mudei para Rio Claro quando minha mãe faleceu e lá vivi três anos, até entrar na faculdade de medicina e me mudar para Campinas”, conta.

A escolha da profissão não foi algo muito racional, pelo contrário. Motivada a ajudar as pessoas, ela diz que não se imagina em outra profissão. A dermatologia veio pelo desejo de poder ver o resultado do tratamento, algo que segundo ela não seria tão claro na neurologia nem na cardiologia, suas primeiras escolhas ainda na faculdade. Apesar de ter feito parte das primeiras turmas a aprender sobre o uso da toxina botulínica na estética, o interesse de Laguiche sempre se direcionou para as doenças, tanto que trabalhou como cirurgiã dermatológica, operando casos de câncer de pele, tendo inclusive feito um curso específico nos Estados Unidos.

Ainda em Campinas ela atendeu diversos casos de hanseníase, pacientes que haviam peregrinado por diversos médicos em busca de um diagnóstico. Ela trabalhou em um ambulatório de hanseníase e depois montou seu consultório. Foi quando conheceu seu marido, um francês apaixonado pelo Brasil e ambos resolveram se mudar para a Europa, onde viveram 12 anos.

“Moramos seis meses na Bélgica, depois quatro anos na Itália, onde nasceram meus dois filhos, uma menina de 16 anos e um menino de 14. Depois voltamos para a Bélgica e então decidimos vir morar no Brasil, em Curitiba. Ele sempre gostou do Brasil, o tio dele migrou para o Paraná em 1922, foi um dos pioneiros na região de Telêmaco Borba”, conta.

Dedicada à maternidade, ela destaca que sentia falta da medicina e por isso decidiu cursar pós-graduação em Medicina Tropical e Saúde Pública Internacional, em Antuérpia, na Bélgica, um dos centros mundiais nessa área. Depois a médica foi convidada para atuar em um programa que visava reequipar um hospital em São Tomé e Príncipe, pequeno país africano, usando equipamentos hospitalares com poucos anos de uso e ainda em boas condições. Segundo ela, o país sofre com muitos casos de malária e morte materna, além de mortes por fraturas causadas por queda de moto. Foram várias viagens em missão, até sua volta ao Brasil.

AMBULATÓRIO

Depois de instalada em Curitiba, Laguiche decidiu retomar a dermatologia e novamente optou por trabalhar com a saúde pública. Acabou se deparando com novos casos de hanseníase e foi trabalhar em um ambulatório filantrópico na cidade, ligado ao tratamento da doença. Participante da Sociedade Brasileira de Hansenologia, da qual é representante da regional Sul e Relações Internacionais, A dermatologista afirma que se deu conta de que a instituição não tinha muito dinheiro para fazer o que era necessário e foi então que aproveitou seus conhecimentos para fundar o Instituto Aliança contra Hanseníase, no início deste ano. O objetivo é levar atendimento a quem precisa, capacitar os profissionais da área de saúde para conseguirem fazer o diagnóstico e também atuar na pesquisa.

“Houve uma absorção intensa da ONG aqui no Brasil, já temos projetos concluídos no Mato Grosso, em Pernambuco e agora recebemos um convite do Estado do Mato Grosso para fazer uma ação mais intensa ainda. O Instituto sempre foca na filantropia, na ciência e na educação”, explica ela, que também já atuou como consultora para o Ministério da Saúde. A parceria com as secretarias de saúde permite que profissionais que não poderiam ser contratados por estes órgãos devido à falta de recursos cheguem a regiões necessitadas.

Ela destaca que a doença é curável com o uso de antibiótico e que o paciente deixa de transmitir a hanseníase a partir da primeira dose. “O tratamento é gratuito no mundo inteiro, nós ganhamos o remédio, assim como a Índia e as Filipinas, os três lugares com mais casos no mundo.”

Para justificar tantos casos no Brasil, Laguiche explica que os profissionais de saúde não são mais treinados para fazer o diagnóstico. Outro problema é o preconceito, que faz com que os próprios pacientes escondam sua condição até de outros familiares. Por ser transmissível, não é incomum, segundo ela, anos depois outros familiares irem parar no consultório com a mesma doença.

“Também existe o preconceito dos próprios médicos. Ele não tem certeza, não quer dar um diagnóstico que não tem certeza, não quer impactar o paciente e deixa que outro médico dê o diagnóstico. Um paciente em média passa dois anos peregrinando de cinco a oito médicos e não consegue o diagnóstico. Todos os dias chegam nos nossos grupos de discussões de médicos casos que têm 12 anos de evolução e sempre foram empurrados com a barriga, ninguém fecha o diagnóstico. É uma doença que afeta pessoas de baixa renda, uma doença negligenciada, ninguém toma nas mãos e levanta essa bandeira. Somos poucos hansenólogos”, lamenta.

Ela ainda atende em seu consultório, mas confessa que passa cada dia mais tempo na ONG, onde atua como administradora e também vai a campo. “Eu adoro o que faço, cada dia passo mais tempo lidando com o Instituto porque realmente virou uma grande paixão que junta a ciência à filantropia. Hoje eu posso trabalhar com o que eu gosto, é um prazer sem igual.”

Além de estudar novas possibilidades de atuação por meio da ONG, Laguiche também se dedicou à pesquisa em outras áreas. Recentemente escreveu um livro sobre um tio do seu marido, uma obra apenas para a família, reconstruindo a história da migração para o Paraná por meio das cartas que ele trocava com a irmã. E por ter vivido muitos anos fora do País, conta que ela mesma cuida da casa e cozinha para a família. “Acho isso normal, mas tem muita gente que não acha. Eu participo bastante da vida em família, da vida do meu marido. Ele não é médico, mas para mim isso é muito enriquecedor. Ele é administrador de empresas, foi diretor financeiro de um grande grupo de química da Europa, aprendo muito com ele.”

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