(Danuza Leão) O bem mais precioso O Carnaval já está quase acabando e você continua ar-ra-sa-da porque não foi convidada para nenhuma feijoada daquelas em que vão todos os artistas e para nenhum camarote da avenida. Sempre foi capaz de batalhar por uma camiseta, mas desta vez jogou a toalha, tirou o time de campo, como se não estivesse nem aí, e agora está se sentindo a mais infeliz e rejeitada de todas as mulheres, já que não fez parte de nenhuma lista – sinal que não é uma das pessoas mais animadas, badaladas, bonitas e famosas da cidade, que vergonha. Mas não fique triste: existem várias maneiras de se divertir sem enfrentar o calor, a multidão e sobretudo sem a obrigação de passar três dias rindo, cantando, dançando, e sem ter a obrigação de arranjar um namorado novo. Pense um pouco: quem não quer nem ouvir falar em Carnaval viajou, quem resolveu ir a tudo vai passar a noite na farra e o dia dormindo para se refazer e continuar tudo na noite seguinte. A cidade está vazia, os restaurantes tranquilos e o trânsito um verdadeiro paraíso. Aproveite a cidade, que nesta época é toda sua, mais do que em qualquer momento do ano. Para quem quer pôr a leitura em dia, é o momento certo; de vez em quando vai passar um bloco tocando Mamãe eu quero, com 14 carnavalescos atrás cantando e dançando, o que não chega a atrapalhar ninguém. Aliás, quem são essas pessoas que durante o Carnaval, cada uma com um instrumento musical, percorrem os bairros tocando velhas modinhas? Serão músicos profissionais, ou apenas gente que adora uma folia? E, se são profissionais, quem paga para que eles toquem o dia inteiro, sem parar nem para tomar um chope? Cheio de mistérios, este mundo. Mas voltando: você já se deu conta da maravilha que é passar o Carnaval em casa, sem nenhum compromisso, nem ao menos o de falar com os amigos pelo telefone, já que ninguém está ao alcance nem do telefone? Pois é. As ruas estão vazias, e o trânsito flui – a não ser que você cruze com uma banda no caminho, uma das piores coisas que podem acontecer para quem só quer uma coisa: sossego. Mas nessa hora é preciso ter calma e pensar que a situação poderia ser mais grave: já pensou, se quisesse sossego e estivesse em Salvador? Quem quiser ir ao cinema não vai precisar entrar na fila, e, nos restaurantes, nem uma alma; sorte sua, pouca sorte dos outros, os donos dos restaurantes. As praias vão estar desertas e os estacionamentos, vazios – ah, como seria bom se fosse assim o ano inteiro. E tem o melhor: durante quatro dias os jornais praticamente não vão falar sobre Brasília, é como se a capital não existisse. Mas as coisas nunca são assim tão fáceis: hoje à noite, quando a TV começar a transmitir o desfile vai dar uma certa agonia, lá isso vai. É uma tal emoção a entrada de nossa escola do coração entrando na avenida – aliás, de qualquer escola –, que não participar da festa é um pouco como estar fora do mundo. É bem verdade que depois da terceira ninguém consegue se lembrar nem do samba, nem das fantasias, nem de quem era a madrinha da bateria, mas não faz mal. E essa história de dizer que é preciso plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho é muito verdadeira e profunda, mas tem mais: não dá para viver uma vida plena sem nunca ter visto um desfile na avenida. Ainda há tempo e a esperança é a última que morre; será que não vai dar para descolar uma entrada para hoje à noite? Tem aquela amiga que comprou um camarote, tem todos os portais da Internet, tem as cervejarias, a prefeitura, o governo do Estado, aquele deputado amigo, e não é possível que não haja uma pessoa, uma só pessoa, que facilite sua entrada, quem sabe dando uma graninha para o porteiro, para o guarda, o Brasil é aqui, a terra do jeitinho, vamos à luta. Pra já, o telefone: é preciso ligar para to-dos os amigos poderosos – afinal, é para essas emergências que eles existem – e pedir, implorar, prometer qualquer coisa, tudo, contanto que possa assistir ao desfile. É claro que vai dar – sempre deu. Enquanto espera a resposta, tome um banho, lave a cabeça e faça uma escova para estar tinindo hoje à noite, e leve o telefone sem fio para o banheiro, para não correr o risco de quando seu amigo ligar para dizer onde passar para buscar a camiseta você não ouvir o telefone tocando. Mas se seu telefone for sem fio, deixe para fazer tudo depois, quando a camiseta já estiver em cima da cama; quando o assunto é de vida ou morte, correr riscos, nem pensar. Uma camiseta – o bem mais precioso que pode existir, numa segunda-feira de Carnaval.