Imagem ilustrativa da imagem 'Aqui é a minha Jerusalém'
| Foto: Gina Mardones - Grupo Folha

“Eu tenho muito orgulho e amor por isso aqui”, diz Salime Dakkache, 84, que ainda trabalha diariamente no Kiberama, fundado em 1965

Cinquenta e quatro anos tem o local do encontro da reportagem da FOLHA com a matriarca de pulso firme e coração mole, um restaurante que ainda guarda o desenho da mistura da cultura árabe com a Londrina de cinco décadas atrás. Lá no fundo, depois do balcão rodeado de poltronas giratórias vermelhas, há uma pequena escada que abandona o piso vermelho para dar lugar aos arabescos azuis. Sorridente, organizando o balcão do self-service com uma toca na cabeça, lá estava Salime Izar Dakkache, 84, fundadora do Restaurante Kiberama, no Centro de Londrina.

“Meus pais são libaneses. Eu sou de Mandirituba, região metropolitana de Curitiba, e vim para Londrina só depois que eu casei, com 20 anos”, começa a contar em uma das mesas ao canto.

Com voz frágil, conta sua história com a mesma doçura com que fala dos filhos e dos funcionários. “Eu vim para cá em umas férias passear na casa de uma prima e ele estava jogando baralho, se interessou por mim. Eu voltei das férias e ele foi para Curitiba pedir minha mão em namoro aos meus pais. Antigamente, os libaneses tinham que agradar a família e com boa conversa ele agradou a minha”, recorda. 'Ele' era Michel Dakkache, marido falecido em 2001.

Foram dois anos namorando por correspondência com encontros esporádicos. “Eu ainda tenho as cartas. Ele se declarava, dizia que tinha medo que eu desistisse dele”, sorri. Para viver com o marido, Salime pediu transferência da escola de Curitiba para dar aula no Terceiro Grupo (atualmente Evaristo da Veiga), em Londrina.

O marido enfrentava as dificuldades de alavancar um comércio próprio, até que um dia, ao receber grupo de amigos para almoço em casa, veio a sugestão. “Eles gostaram da minha comida e falaram: 'por que não abre um restaurante?'. Ele aceitou a ideia, abriu uma portinha aqui mesmo. Nossa casa ficava nos fundos”, conta.

Kibe cru, grão de bico, coalhada e charuto foram os responsáveis por conquistar a clientela formada por brasileiros entusiastas da cozinha árabe. “O começo do restaurante foi muito movimentado, depois a gente pegou uma receita de família da esfiha, era da minha mãe, e aí não parou mais, até hoje é o nosso carro-chefe. Primeiro eu trouxe minha mãe e meu irmão, ela entendia muito, era uma excelente cozinheira, a maioria das receitas que eu sei é da minha mãe, de comida caseira, depois fomos introduzindo pratos brasileiros”, conta.

SEGREDO

Diz Salime que a esfiha mais famosa da cidade só tem um segredo: amor. “A gente dedica muito amor para isso aqui”, menciona. Apesar de ser um ingrediente especial, ficou a dúvida de que ela escondia o jogo. “Você quer uma receitinha?”, perguntou com gentileza. Quem recusaria? “Um litro de água morna, um copo americano de açúcar, um copo americano de óleo, uma colher rasa de sal, 50 gramas de fermento biológico e, mais ou menos, 2,5 kg de farinha de trigo de boa qualidade”, passa de cabeça. Ao ser perguntada quantas vezes repetia esse mantra, ela ri: “Toda hora estou passando essa receita. Os clientes sempre pedem, mas eles falam que não acertam. Pode ser que seja o forno, porque aqui é industrial”, indica.

Para validar ainda mais o seu relato, Salime convida a reportagem para entrar na cozinha e conhecer o processo de produção das esfihas. Segundo ela, as que mais saem são as fechadas de carne e de queijo e a aberta de carne com queijo. Lá dentro, as funcionárias vão mostrando o passo a passo, contam sobre a dedicação no trabalho e que também já tentaram fazer a mesma receita em casa, mas não fica igual. Eis o mistério...

ROTINA

Foi na cozinha que descobrimos como começa o dia de Salime no restaurante. “Com um beijinho no rosto de cada uma, desejando um bom dia”, relatam as funcionárias. Salime agora é responsável pelos pratos no restaurante, é dela o toque final. “Eu não venho aqui porque precisa, porque está muito bem organizado, tem nutricionista, tenho dois filhos que tocam. Eu venho porque eu gosto, além de ser útil, eu me distraio”, justifica.

Ela chega todos os dias às 8h30, uma hora antes de abrir o restaurante, e fica até as 14 horas. Todos os dias, de segunda a sábado, caminhando da sua casa ao estabelecimento - duas quadras de distância. O restaurante fecha aos domingos para que os funcionários fiquem com a família. Ela não faz diferente, gosta de estar com os seus em comemoração que sempre envolve comida. “Quando o Michel era vivo, a gente fazia banquetes para a família”, recorda.

FAMÍLIA

Morando nos fundos do restaurante, Salime criou seis filhos, dois homens e quatro mulheres. Para lidar com a cozinha e ainda educar os filhos, precisou de ajuda. “Eu sempre tive gente que me ajudou muito, tanto aqui no restaurante quanto na educação dos meus filhos”, afirma. Pedro e Carlos, que começaram a ajudar os pais aos 12 anos, ficaram responsáveis pelo estabelecimento. Com eles, a cozinha ganhou máquinas que agilizam a produção. Agora, com a introdução de três jovens netos, vem também a tecnologia, como as entregas por aplicativo.

Essa troca de geração também é representativa na clientela. “As pessoas vêm dizendo 'ah, meu avô me trouxe aqui', outro fala: 'hoje eu trouxe meu neto para conhecer', são histórias de família”, lembra a matriarca. Com a tradição, é comum que surjam amizades. “Até hoje eles(os clientes) me chamam lá na cozinha, querem ver como eu estou, se ainda estou de pé”, ri. Os funcionários antigos que já se aposentaram também fazem questão. “Eu lembro da amizade que a gente fazia com funcionárias antigas, elas vêm nos visitar, têm saudade da gente. O que eu mais gosto daqui é o carinho que os funcionários têm comigo, a minha relação com eles é muito boa”, agradece.

LONDRINA

Quando o restaurante abriu, em 1965, funcionava em uma portinha na frente da casa que ficava no mesmo endereço que é hoje. “Era macadame, sabe o que era? Não era asfalto, era pedra. E muitas ruas nem asfalto tinham”, recorda. O movimento dos comércios no Centro é que trazia a clientela para o local.

Foi nessa Londrina que Salime precisou de ajuda para encontrar temperos árabes para os pratos que fazia. “A gente comprava no Mercado Furuta algumas coisas e depois a gente passou a buscar em São Paulo”, comenta. Naquela época, muitos políticos almoçavam no local. “Eram mais políticos famosos que artistas”, recorda.

O balcão de atendimento, que continua o mesmo, tinha formato de ferradura e conforme o movimento foi crescendo, foram ampliando o espaço, formando um quadrado, canto de domínio do marido. “Eu ficava na cozinha e meu marido fazia todo o resto, ele atendia, fazia suco, limpava o balcão... Ele vivia com um pano limpando o balcão, é a característica que as pessoas mais lembram dele”, recorda.

De um prato árabe às raízes em Londrina, Salime tem na memória uma cidade, uma família e um restaurante que une tudo isso. Do alto dos seus 84 anos, a matriarca conta com memória ágil sobre os 54 anos de um estabelecimento tradicional na cidade, uma construção que envolve afeto, trabalho e força para continuar algo que não pretende abandonar. “Eu tenho muito orgulho e tenho amor por isso aqui. Aqui é a minha Jerusalém”, fala emocionada.