"Todo mundo pode cantar, mas dizer que todo mundo vai ser um grande cantor, não", diz Walkyria Côrtes Ferraz, 86, junto ao piano herdado de sua mãe, do ano de 1925
"Todo mundo pode cantar, mas dizer que todo mundo vai ser um grande cantor, não", diz Walkyria Côrtes Ferraz, 86, junto ao piano herdado de sua mãe, do ano de 1925 | Foto: Saulo Ohara



Oitenta e seis anos de idade, sendo mais de 40 deles dedicados ao ensino da música. Mais de dois mil alunos. Madrinha do Festival de Música de Londrina. Regente do Coral da Universidade Estadual de Londrina. Cidadã Honorária de Londrina. O currículo profissional da professora de canto Walkyria Côrtes Ferraz impressiona, mas não mais do que a sua vitalidade.

Muito ativa ela conta que ainda dá aulas cinco dias na semana, embora, por sua escolha, o número de alunos tenha diminuído de 30 para 20. Faz questão de ir ao supermercado e ao banco dirigindo o próprio carro, mesmo que depois de uma fratura na coluna precise da ajuda dos filhos e netos para pegarem as compras. E não dispensa o encontro semanal com uma amiga querida para uma pausa para o café e uma boa conversa.

Professora não só de cantores mas também de jornalistas, oradores, políticos, atores e diversos profissionais, Ferraz surpreende ao dizer que, quando começou a estudar música, o que menos desejava era dar aulas. "Eu queria ser cantora e dizia que a única coisa que eu sabia que não queria era ser professora. Você acha que é possível? Eu adoro ser professora! Quando a gente é novinha não sabe das coisas", atesta.

Nascida em Curitiba, ela conta que foi estudar piano aos 13 anos. Seu desejo era estudar canto, mas para ingressar na Escola de Música e Belas Artes do Paraná foi preciso primeiro dedicar quatro anos ao aprendizado do instrumento, além de outras matérias. Foi aos 13 anos também que ela entrou para o Coral da Catedral de Curitiba. No final das contas, são cerca de sete décadas permeadas pela música.

Embora não tenha vindo de uma família de músicos, ela conta que sua mãe gostava muito de piano, mas devido aos costumes da época só tocava em casa. O instrumento herdado da mãe, datado de 1925, a acompanha até hoje, marcando presença imponente na sala de aula.

"Aos 25 anos me casei e fui morar em São Sebastião da Amoreira. Ficamos dois anos lá. Ele era médico (Alceu Serpa Ferraz, falecido em 2013) e quis fazer especialização em São Paulo, onde ficamos mais dois anos. Tivemos cinco filhos e acabei afastada da música por sete anos. Tínhamos vindo para Londrina, a família dele estava aqui e depois que nasceu meu quarto filho, voltei a estudar com o Andréa Nuzzi (maestro autor do hino de Londrina). Montamos um grupo chamado Escala de Seda, era um conjunto vocal e a gente cantava por ai", conta.

Porém, Nuzzi faleceu e foi aí que a carreira de Ferraz começou a mudar. O coral da UEL estava se formando e ela, que até então era cantora, foi convidada para ser a ensaiadora do grupo. "Em um mês eu precisei aprender a reger e a tocar flauta. Comecei a dar aulas e também trabalhei com outros corais", explica.

Em sua família, três dos cinco filhos se tornaram músicos, cantando ou tocando instrumentos. Cercada por uma grande área verde, muitas vezes ao som das aulas da filha Hylea Ferraz na casa ao lado, é na própria sala que a professora recebe seus alunos. A impressão é de que voltamos no tempo e logo os convidados começarão a chegar para um sarau. "Ah, mas eu fiz muitos saraus aqui, aulas coletivas. Agora dei uma parada. Meu marido também gostava muito de música e algumas vezes tocamos a quatro mãos no piano, quando ele tinha tempo", diz.

A idade trouxe algumas limitações físicas e hoje ela conta que, apesar de ser madrinha do Festival de Música de Londrina, não vai mais às aulas e apresentações. "Eu trazia o pessoal para cá, dava almoço. Esses últimos anos eu não tenho ido, não aguento. Não vou ao cinema, não viajo mais. Agora eu quero ficar no meu canto. Aqui qualquer coisa os médicos sabem do meu problema", justifica.

Além do recente problema na coluna, ela diz que também tem próteses nas duas pernas, o que exigiu o uso de uma bengala durante muito tempo. Hoje a professora se locomove com a ajuda de um andador bastante moderno, chamado por ela de Ferrari. "O andador é mais confortável, muito leve, com ele eu posso correr", conta rindo, dizendo que até ganhou de um dos netos alguns adesivos da famosa escuderia italiana para personalizar o equipamento.

Aulas e metodologia
Ferraz afirma que mantém uma metodologia de aula que não agrada aos alunos mais apressadinhos. São duas aulas na semana, de meia hora cada uma. O número de alunos varia a cada dia, mas a cada um ela dedica atenção especial. Também faz questão de explicar a técnica como um todo e não ensinar apenas uma música escolhida pelo aluno. "Cantar é usar o corpo inteiro, saber articular, é um trabalho de formiguinha. E eu sou chata, a pessoa não quer (aulas) duas vezes por semana, mas se quiser, tem que ser assim. As pessoas querem saber quanto tempo (para aprender) vai levar, não sei, é o tempo de Deus, cada um tem um tempo diferente."

Mesmo para quem não acredita ter muita vocação, ela diz que é possível aprender. "Todo mundo pode cantar, mas dizer que todo mundo vai ser um grande cantor, não. Tem gente aqui que eu toco um som e a pessoa canta outro, não sabe repetir o que eu toquei. Eu vou para o som que a pessoa cantou e ela canta outro. E eu fico pensando o que eu vou fazer, mas conserta. Eu não tenho medo de nada, mas eu não faço milagre, eu mostro o caminho e cada um faz o seu milagre", explica Ferraz.

Medo mesmo ela só tem de ficar parada. Quando teve o problema de coluna e ouviu do médico que precisaria fazer repouso, sua preocupação foi poder dar aulas. "Não posso ficar parada, falou em repouso eu fico apavorada. A minha cabeça funciona ainda", diz rindo.

Tamanha vitalidade, claro, ela atribui à música. "Música é o segredo da jovialidade. A música faz milagre com o ser humano. A voz é mágica, ninguém sabe direito como ela é. A gente sabe que tem as pregas vocais, o ar passa e produz o som. Mas e aí? Não tem uma tecla, uma corda mesmo, nada para apertar para produzir som. Em um instrumento, cada som é em um local diferente, mas que milagre é o ser humano? Enquanto puder vou dar aulas, mas digo para os alunos aproveitarem enquanto eu estou inteira, não sei até quando."