Com o mais recente massacre em uma unidade de ressocialização brasileira, no Centro de Recuperação de Altamira (PA), o saldo de mortes em atos de violência ou rebeliões em presídios no Brasil já se aproxima de 200 somente nos últimos dois anos. A principal medida das forças de segurança do Pará foi determinar a transferência de 46 líderes das facções "Família do Norte" e "Comando Classe A", para outros presídios do Estado e da federação. Ao todo 58 presos foram brutalmente assassinados nesta segunda-feira (29) e alguns ainda não haviam sido enterrados até o final desta semana, também pela dificuldade de reconhecimento dos corpos por parte dos familiares.

Imagem ilustrativa da imagem 'Por uma razão humanitária ou impactos na segurança pública'
| Foto: Divulgação/CNMP

Para Antonio Henrique Graciano Suxberger, membro auxiliar da Comissão do Sistema Prisional do Conselho Nacional do Ministério Público, é fundamental tornar a grave crise no sistema carcerário brasileiro em um tema central da agenda pública nacional. Diante de mais um episódio de violência, ele lamenta que nem mesmo a cobertura do fato, considerado muitas vezes como uma “tragédia anunciada”, tenha surtido efeitos para uma efetiva sensibilização da sociedade civil, ainda que tenha sido protagonizado por facções criminosas.

A guerra entre facções ocorre em cenário de superlotação cuja taxa de ocupação ultrapassa 165% nas 1.404 unidades avaliadas pelo Conselho Nacional do Ministério Público. Quase a metade destas unidades (41,17%) não possui assistência educacional aos presos, como determina a LEP (Lei de Execução Penal), facilitando a cooptação de presos que não teriam perfil para o cometimento de crimes bárbaros pelos organizações criminosas.

Outro dado alarmante mostra que houve mortes de internos em quase 500 unidades penais e em 384 foram registradas lesões corporais praticadas por agentes carcerários. As informações são do banco de dados do Sistema Prisional em Números, software do Conselho Nacional do MP. Em 2018, o País contava com uma população carcerária formada por 727 mil presos quando a capacidade total era para 440 mil.

Em entrevista à FOLHA, Suxberguer chama a atenção para temas como a subutilização dos recursos do Funpen (Fundo Penitenciário Nacional), cujos repasses obrigatórios a partir de 2020 deverão alcançar a monta de R$ 17,94 milhões, valor considerado insuficiente pelo Tribunal de Contas da União.

O que se percebe é que diversos setores da sociedade não se preocupam com os problemas que ocorrem dentro dos presídios ou, ainda, os aplaudem. Quais são suas perspectivas neste cenário?

A agenda da questão prisional como um problema público é uma agenda que deriva muitíssimo de movimentação institucional. Ela não está na pauta do debate público por uma demanda popular ou por sensibilidade dos políticos. É o Ministério Público que fiscaliza o sistema prisional, são os órgãos de defensoria pública e prestação de assistência judiciária que igualmente movimentam os órgãos fiscalizatórios. É o Judiciário que faz um trabalho extremamente complexo de competências partilhadas e coordenadas com os Executivos estaduais na gestão destas vagas. Enfim, a pauta de visibilidade do problema público é uma pauta de instituições. Não toma de surpresa a ocorrência de situações drásticas, tragédias como essa, porque os nossos números públicos divulgados já têm noticiados problemas estruturais no sistema prisional. Agora tornar a questão prisional uma temática da agenda pública a ponto de reclamar políticas públicas mais efetivas é realmente um tema ainda em aberto. Basta lembrar que o próprio Supremo Tribunal Federal se valeu de um instrumento extremamente heterodoxo para poder chamar a atenção que foi a declaração de estado inconstitucional de coisas promovida naquela famosa ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 347, cujo mérito até hoje não foi julgado, veja só. Então é realmente difícil colocar isso na centralidade no tema de política pública, o que nós temos tentado aqui sensibilizar de maneira geral é arregimentar e coordenar não só o desenho de políticas públicas, mas igualmente o papel das instâncias de controle, como tribunais de contas, os próprios ministérios públicos e judiciários locais no acompanhamento de iniciativas que sejam efetivas para a boa utilização das verbas destinadas à execução da pena no Brasil. Por exemplo, as temáticas que envolvam o Funpen (Fundo Penitenciário Nacional) são de preocupação maior por conta disso, ou seja, em que medida que estes gastos têm sido utilizados de maneira adequada e que tem permitido a efetiva adoção ou planos de ampliação e implementação de vagas. Se formos olhar os níveis de execução das verbas vamos perceber que os percentuais de execução financeira são baixíssimos, talvez alguns poucos Estados que já alcançaram patamares mais elevados seriam Acre, Ceará, Goiás, Sergipe e Tocantis. Mas você vê que de uma maneira geral vários Estados que sequer se aproximaram dos percentuais de execução financeira do Funpen.

Por que, nos últimos anos, os massacres estão aumentando?

Não é possível fazer um mapeamento dos problemas que têm surgido ao longo dos anos nos diversos estabelecimentos prisionais Brasil à fora como se fosse um único fenômeno. Cada um deles tem as suas conformações específicas, as suas razões de compreensão da dinâmica que, então, permitiu-se alcançar um quadro drástico de tragédia inaceitável como essas situações noticiadas ao longo dos anos. É lógico que os números do sistema prisional demonstram uma situação de falência do próprio sistema, o que já foi reconhecido pelo próprio Supremo Tribunal Federal, mas o ponto é que não é possível compreendê-los todos descritos de uma única e simples maneira, cada situação é peculiar.

Qual é a eficácia da transferência de líderes de facções criminosas para presídios federais?

Dada a identificação da razão de ser do problema enfrentado em Altamira, ou seja, um conflito entre facções, a transferência de lideranças identificadas e a absoluta dissociação desses nomes de imediato, seja realocando-os em outros presídios do próprio Estado ou mesmo realocando-os, excepcionalmente, no programa de utilização dos presídios federais em situações assim, são atitudes esperadas e hoje já compreendidas como práticas reconhecidas seja no plano nacional a cargo da política penitenciária nacional, ou seja nos próprios Estados. É medida que se mostra eficaz, ao menos como medida emergencial para a unidade, mas que, na sequência, precisa ser verificado, como eu disse, cada caso, para se permitir a incidência de providências que atenuem e permitam o pronto restabelecimento dos serviços prestados aos internos e o domínio do próprio Estado dessas unidades prisionais. A peculiaridade aqui diz respeito a esse ponto de que na situação de Altamira não havia notícia especificamente de interrupção ou de problemas nos serviços de assistência aos presos. Havia problemas, é evidente, mas nada que ensejasse o quadro ali enfrentado.

É preciso atualizar ou alterar a legislação?

O problema é menos normativo e mais estrutural. O problema da lei não é a mudança da lei para atender algo que seja melhor, se nós conseguíssemos cumprir o que a lei diz já seria ótimo. O problema da LEP (Lei de Execução Penal) não é a sua desatualização é a sua inobservância, vivemos hoje um quadro de ilegalidade, então se conseguíssemos implementar o que a lei estabelece já avançaríamos sobremaneira na questão. Lógico que algumas mudanças legislativas são necessárias, já tivemos diversos debates sobre isso no Congresso Nacional, havia um projeto de atualização da lei de execução da pena que então tocava, inclusive, modificações no direito processual penal e no direito penal. Há pautas em aberto, como a definição do momento em que se inicia o cumprimento de pena no Brasil, que é um tema que vira e volta vai ao Supremo Tribunal Federal, muitas vezes com uma má compreensão. E por que má compreensão, qual é o ponto? O ponto aqui é que gestão de preso é diferente de questão jurídica de acusado. A gestão de preso implica que preso provisório seja aquele que não foi sentenciado e uma vez sentenciado ainda que exista uma pletora de recursos, como de fato há no nosso sistema, ele passa a ser tratado como um preso, não mais um detido, em cumprimento de pena. São situações em aberto que reclamam um aprimoramento mais do que mudanças legislativas que se vierem serão bem-vindas, mas estruturalmente o sistema prisional brasileiro não consegue atender aquilo que a lei estabelece. Se for para mudar a lei que se mude então para que se tenha a lei a ser cumprida e não que a lei venha a refletir uma realidade que hoje é caótica.

E o que determina o pacote anticrime do ministro Sergio Moro com relação ao sistema prisional?

O debate legislativo está sendo feito, o Ministério Público de uma maneira geral tem acompanhado de modo próximo seja por meio do Conselho Nacional de Procuradores-gerais, das associações. No que toca aqui o Conselho Nacional nós já temos um mapeamento das iniciativas, já estabelecemos grupos de trabalho a dizerem sobre projetos de lei que tocam a execução penal, mas especificamente do pacote anticrime, que é essa sequência de projetos, nós temos manifestações hora elogiando, hora criticando pontos que o projeto resgata das alterações anteriores. Mas, enfim, é um tema que ainda se encontra em aberto. O fundante talvez aqui seja o ponto que você destacou, é passada a hora que a temática da questão prisional assuma um ponto de efetivo destaque na agenda pública, seja por uma razão humanitária, nós estamos falando de pessoas que estão passando por situações absolutamente inaceitáveis sob custódia do Estado, ou seja até mesmo pelos impactos que isso tem nas temáticas de segurança pública e prevenção de novos crimes, porque são sentenças criminais que não são cumpridas. Esta não é a preocupação, especificamente sobre um ponto ou outro do projeto. Talvez o mais relevante aqui seja que nós consigamos trazer ao menos como tema mais importante da discussão política atual.