O clima de polarização, as decisões cada dia mais políticas do que técnicas no STF (Supremo Tribunal Federal) e uma Justiça morosa são combustíveis para a insegurança jurídica que o País atravessa. A análise é do desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Wálter Maierovitch, que classifica como 'contorcionismo jurídico' o resultado das últimas decisões da Corte.

Imagem ilustrativa da imagem 'Fazer política criminal é cuidar do interesse da sociedade'
| Foto: Divulgação/CBN Londrina

O jurista e professor de direito penal comenta a queda de braço entre à Câmara de Deputados e Senado no posicionamento de rever a prisão após o julgamento em segunda instância. O tema foi revisto recentemente pelo Supremo e resultou na soltura de políticos condenados por órgão colegiado, entre eles o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

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| Foto: Dorivan Marinho/STF

Maierovitch também critica as decisões do presidente do STF, Dias Toffoli, sobre impor limites ao uso de dados do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), órgão que rastreia transações financeiras. Estudioso da Operação Mãos Limpas - investigação judicial de casos de corrupção que teve início em Milão na década de 1990 - e do direito italiano, o jurista costuma traçar paralelos entre os dois países em suas palestras. Em Londrina, não foi diferente ao participar do "Fórum CBN Ética nos Negócios" e conceder entrevista à FOLHA na última terça-feira (26):

Há uma queda de braço no Congresso sobre a autoria de um projeto para restabelecer a prisão após a segunda instância. Por que esse tema nunca se esgota?

Se nós tivéssemos um processo criminal com prazo aceitável de tramitação não estaríamos discutindo a presunção de não culpabilidade e mal chamada de presunção de inocência. O processo penal brasileiro tem muitas instâncias e recursos, que não dá um prazo razoável. Ou seja, não temos uma politica criminal adequada e portanto temos esse processo penal, que é uma resposta que a sociedade espera em prazo razoável. As pessoas esquecem a garantia do estado de inocência num país polarizado. O que que a gente vai fazer, apagar uma garantia? Recortar a garantia? Ela se aplica só até segundo grau, depois não se aplica mais... Depois do último julgamento do Supremo, deu inicio a essa busca por uma tábua de salvação.

O senhor vê viabilidade no trâmite da PEC sobre prisão após decisão em segunda instância discutida na Câmara?

Essa tábua de salvação foi lançada no Supremo pelo ex-ministro Cezar Peluso. Ele diz que o processo termina em segunda instância e transita em julgado. Quem não tiver de acordo entra com uma ação rescisória. Aí é ação. Ou seja, quem quiser rescindir o julgado entra no Supremo. E não vai barrar no princípio da presunção de inocência e é essa a emenda Peluso. É exatamente essa que foi aprovada na CCJ na semana passada.

O tema pode ser revisto com mudanças em dois artigos do Código do Processo Penal, como se discute no Senado?

Veja a hierarquia de leis: A Constituição Federal está acima do código. O Supremo vai sempre dizer a mesma coisa sobre o principio da presunção da inocência. E não adianta escrever no Código de Processo Penal que se transite em julgado após a segunda instância.

É uma jogada mais política que o senhor vê?

Eu não vejo jogada política, vejo uma jogada preocupante. Se aprovado isso, volta ao Supremo e há arguição de inconstitucionalidade. Que dizer, é uma farsa perante ao povo.

O senhor acha que temos um processo legislativo pouco qualificado?

A política criminal já se diz que é a sabedoria legislativa do Estado, é saber fazer as leis e cuidar do interesse da sociedade. Saber verificar se as leis existentes protegem a sociedade. Isso é política criminal. E qual nós temos? Esse que dá durabilidade enorme ao processo que muita gente culpa apenas a prescrição, que não deixa de ser um benefício. Mas é dever do Estado julgar em tempo adequado.

O senhor acredita esse tema da segunda instância deve ser pacificado?"

Pela emenda Peluso. Mas meu ideal é ter um processo com prazo razoável. O que fez a Constituinte de 1988? Criou mais uma instância, que é o STJ (Superior Tribunal de Justiça). A terceira instância foi criada para uniformizar o entendimento da lei federal, mas o que vemos de prática é que conseguiu dar uniformidade às leis e à jurisprudência dos tribunais regionais. Já o que sobrou ao Supremo não é um tribunal constitucional. Para não perder o poder, ele acaba atuando como legislador. Temos que cuidar da política criminal.

O pacote anticrime do ministro da Justiça, Sergio Moro, é uma saída?

Não. Vai esbarrar em muita coisa, veja o absurdo do absurdo. O tribunal do júri julga crimes dolosos contra a vida. O projeto Moro diz que o tribunal popular, se condenar, o sujeito sai preso, porque é um órgão colegiado. Esse tipo de tribunal popular só tem no Brasil, ele é absolutamente medieval, onde o júri só responde se condena se sim ou se não. Ou seja, os jurados não dizem por que estão condenando. Que tipo de populismo judiciário se quer chegar? Isto não é nem técnico nem justo.

O sistema jurídico precisa de uma reformulação?

Sim e é necessário também se fazer uma nova Constituição. Mas não há amadurecimento para se pensar uma nova Constituição, ainda mais num país polarizado. Não é só emendar a existente.

Sobre a polêmica envolvendo decisões sobre o uso de dados do Coaf na Justiça, qual a sua avaliação sobre a decisão do ministro Dias Toffoli que restringe o acesso de investigadores a dados de movimentação financeira?

Da pior forma possível. O Coaf foi uma conquista, tendo em vista a convenção da ONU (Organização das Nações Unidas) de 1988 que diz que o sistema bancário internacional está contaminado com o dinheiro do narcotráfico. Foram diversos mecanismo criados para rastrear esse dinheiro lavado. A competência do Coaf é ver uma movimentação que pode ser suspeita, mas ele não investiga. De 1998 até agora, o ministro Toffoli não se preocupou com o problema. Agora tem uma ação lá de 2017 no Supremo, que é essa do recurso extraordinário de agora a envolver não o Coaf, mas a Receita Federal. O plantão judiciário é para atender urgência e vai lá o advogado do senador Flavio Bolsonaro (sem partido-RJ) com um fato sobre o Coaf, entra dentro desse processo de 2017 que está sendo julgado, e fala que a situação é igual e que está tendo compartilhamento sem autorização judicial. Aí pede uma liminar em caso não urgente e o Tofolli dá e suspende tudo...

O que está por trás disso?

O Tofolli já foi reprovado em concurso de ingresso à magistratura, os votos dele não têm brilho. Ele está tendo uma postura de um tribunal político quando o tribunal é técnico. De repente se vê um ministro se relacionando com o presidente Bolsonaro, mas não relações institucionais, relações de almoçar, jantar, tomar café. Há uma promiscuidade. De repente sai uma liminar, fato estranhíssimo porque não tem nada a ver com aquele processo. E de repente o que que se viu? Um tiro pela culatra porque o Tofolli deu um voto, aí o ministro Alexandre de Moraes dá outro voto. Então se vê pela sociedade que o Supremo está com um desprestígio muito grande.

Qual a diferença entre a Lava Jato e a Operação Mãos Limpas?

Na Operação Mãos Limpas o diferencial é que a origem foi em Milão, onde não há foro privilegiado. Lá o julgamento foi feito por órgão colegiado. Não há um Sergio Moro, vamos dizer assim. Reduz o protagonismo e o número de recursos. Lá existe o segundo grau, corte de apelação e corte de cassação. Resultado: todos os partidos políticos envolvidos foram extintos. Aqui alguns só mudaram de nome. E há outros exemplos. O ministro do STF, Gilmar Mendes, na Lava Jato, diz que tem que ter um prazo para a prisão preventiva. Na Itália, para os crimes de máfia, não há prazo, quando há interesse da sociedade. Acertos e erros evidentemente que a Lava Jato tem e os tribunais estão aí para isso.

O senhor acredita no futuro da Lava Jato?

Sim, eu tenho que acreditar. Tenho uma vida de oposição a esses fenômenos de crime organizado. Agora, existem maneiras. Não se combate criminalidade fora da lei.

Qual o prejuízo dessa insegurança jurídica?

A insegurança jurídica é para todos, principalmente no mundo empresarial. Que garantia o Supremo dá com esses contorcionismos? A resposta que temos é a pior possível. Olha essa violência no Rio de Janeiro, tem o PCC (Primeiro Comando da Capital) em São Paulo. A insegurança não é só jurídica. Tem entrega de território e passa a haver controle territorial pelo crime organizado. Tem controle social, evidentemente que vai ter controle eleitoral. Eu vejo todos esses problemas que a gente vem enfrentando, mas que não são coisas estanques. Tem a morte da ex-vereadora Marielle Franco que não se soluciona. E ainda estamos vivendo isso dentro de uma polarização, que é o horror dos horrores.

Ouça a entrevista: