Enquanto para muitas pessoas a leitura é hábito que chega ao vício, para outras, beira ao sacrifício. Julia tem 11 anos, o pai e a mãe são apegados aos livros e há na casa um quarto que virou biblioteca. Ele advogado, ela jornalista, somam obras desde contos de Machado de Assis, quadrinhos como Turma da Mônica Jovem em espanhol , auto-ajuda, moda, humor, gastronomia, história, arte, direito e publicidade. Ao olhar, até parece papel de parede em tempos de live, mas são livros de verdade. “O Velho e o Mar”, de Ernest Hemingway, lá está, à mão, "Se Você não tem bunda, use laços no cabelo", de Bruce Littlefield, Barbara Corcoran, é lição de empreendedorismo e as crônicas de Martha Medeiros, sem competição, lá estão.

A leitura para a família está no cotidiano - pessoal, profissional - e é também um prazer. Mas, durante a pandemia, entre uma atividade escolar online e outra, Jotinha – como Julia gosta de ser chamada - sem papas na línguas, confessou à mãe: "Não gosto de ler". A sinceridade chegou como cacofonia. Na medida da sabedoria, os pais têm aproveitado todas as ferramentas para mostrar à filha - que debuta no Fundamental 2, que ler é lúdico, traz conhecimento, permite viagens sem sair do lugar. Do contrato com a empresa de telefonia, ao cardápio, tudo é leitura.

Assim como Julia, muitas crianças vivem a pandemia, pouco apegadas à leitura. Mesmo cercadas de tarefas online, se sentem ansiosas e ociosas. Do ponto de vista da bibliotecária e docente do Departamento de Ciência da Informação da UEL, (Universidade Estadual de Londrina) Sueli Bortolin, a leitura é uma boa sugestão no ócio, no trabalho, na saúde, na doença, na tristeza, na alegria, nos encontros e desencontros e nas perdas. "A leitura é sempre um ganho quando é realizada de forma plural. Com plural quero dizer tudo, sem preconceito. Evidente que não podemos ler tudo, mas sem dúvida com as facilidades tecnológicas estamos mais expostos a receber todo gênero de textos. O celular nos deixa constantemente ligados lemos com os olhos e ouvidos. Isso é democrático, mas exige, principalmente com o atual movimento de patrulha ideológica desrespeitosa, uma leitura crítica para conseguirmos separar o joio do trigo", alerta. "Vale lembrar que na leitura, de ficção a fantasia tudo é saudável; na leitura de realidade não, pois é alienação", ratifica.

SONHOS E LIVROS NÃO ENVELHECEM

Sueli Bortolin: "Não podemos ler tudo, mas sem dúvida com as facilidades tecnológicas estamos mais expostos a receber todo gênero de textos"
Sueli Bortolin: "Não podemos ler tudo, mas sem dúvida com as facilidades tecnológicas estamos mais expostos a receber todo gênero de textos" | Foto: Roberto Custódio/ Arquivo Folha 12-03-2020

Há um aspecto que pode ser um atrativo para a leitura em família: os pais podem pegar livros que fizeram parte de sua formação e criar um momento com os filhos. Bortolin considera uma boa ideia. “Não tenho dúvida de que, respeitando o gosto e o desejo dos filhos, os pais precisam narrar suas experiências. Contar como viviam e liam (o mundo e os textos), pois isso amplia e resgata vínculos. Mas infelizmente não tenho visto muito isso em família, mas a memória familiar provoca muitas emoções: riso, saudade, orgulho, vergonha, inveja, amor entre outras manifestações humanas que pode subsidiar decisões presentes e futuras", expõe.

A liberdade de leitura é também convite do ponto de vista da professora. "No passado, se quiséssemos ler livros não recomendados pela escola e pela família, tínhamos que ler escondidos. Avançamos nesse aspecto, pois o leitor enfrenta melhor isso, faz suas escolhas, comenta, critica e por meio de blogs, vlogs, clubes de leitura, trocam ideias, alteram os enredos, barganham e vendem livros". Bortolin também acena positivamente para os gibis, alternativa para leitura, porque hámuito tempo o gibi deixou de ser o “patinho feio” da Literatura. Ler imagens é mais difícil que ler palavras escritas, os gibis com seus balões e figuras divertem, ensinam e “desneurotizam” as mentes de qualquer idade.

Sobre as perspectivas de uma obra, seu valor e perpetuação na história, a expert faz a devida distinção. "Tem livro que morre ao nascer, mas há livros que nem chegam na idade adulta. Só um livro de qualidade permanece pela eternidade". A seu ver, um livro de qualidade é aquele que nos torna mais humanos, solidários, respeitosos e empáticos. "Cito os contos de fada -infelizmente desvirtuados e empobrecidos) que tem uma estrutura fixa, abordando as angústias humanas e que, por meio do imaginário, ajudam a criança a buscar soluções, por exemplo, para enfrentar a vida adulta", observa.

Acerca do papel da família no incentivo à leitura, reflete: "Se me permitem aconselhar: não entrem nesse engodo de censurar e desvalorizar o imaginário! Em 1993 esteve aqui no Brasil o psicanalista francês René Diatkine. Fiquei impressionada com a lucidez e guardo até hoje a entrevista que ele concedeu à uma revista. Dessas folhas tiro o seguinte pensamento: “A criança sabe distinguir muito bem a linguagem do cotidiano da linguagem das narrativas. Ouvindo histórias, ela cria um espaço em sua cabeça para um mundo mágico fabuloso. Ela aprende a reagir a situações desagradáveis e a resolver os seus conflitos pessoais.” Portanto, não negue a ela esse direito! ", diz.

AMBIENTE ESTIMULA A LEITURA

Leda  Araújo: "Quanto mais nova a criança, maior o cuidado com a escolha da história, pois eles são propensos a dispersar a atenção"
Leda Araújo: "Quanto mais nova a criança, maior o cuidado com a escolha da história, pois eles são propensos a dispersar a atenção" | Foto: Gina Mardones/ Arquivo Folha 25-10-2019

"O ambiente acolhedor, confortável e colorido estimula a criatividade e a permanência da criança no espaço". É o que pensa a bibliotecária e Diretora do Sistema de Bibliotecas da Secretaria Municipal de Cultura (SMC), Leda Maria Araújo. Nesse sentido, orienta que, em casa, a família organize um espaço, um cantinho para a leitura, que seja um ambiente acolhedor - com almofada - e que garanta inclusive a interação pai e filhos ou avós, interação entre irmãos e outras pessoas. Desde março, no período da pandemia, as atividades das bibliotecas estão sendo realizadas de forma online. De acordo com Araújo, existem possibilidades para leitura em todas as idades. Quanto mais nova a criança, maior o cuidado com a escolha da história, pois eles são propensos a dispersar a atenção. A dica então é contar histórias curtas, de animalzinho, bichinhos. "As crianças de quatro, cinco anos gostam das historinhas de repetição, histórias cantadas. Por exemplo: 'Dona Baratinha', 'Menina Bonita do Laço de Fita', 'Chapeuzinho Vermelho' entre outros clássicos. Já os contos de fada clássicos são ótimos também para a faixa etária de cinco e seis anos." Para os que já alcançaram sete, oito e nove, a diretora explica que o gosto vai alterando e vão gostando de aventuras, suspenses. " As histórias são fundamentais para a formação e desenvolvimento integral da criança. Os adolescentes adoram e exploram o universo dos games, dos Yyutubers, pois está na linguagem deles. É importante neste período de pandemia, os pais separarem um tempo para ler para seus filhos, pois isso fortalece e aumenta o vínculo familiar. Além de ler o brincar também é fundamental para formação do ser, desenvolve o físico, o psíquico, o motor, a interação, o humano. Para isso, a escolha dos livros, a preparação do ambiente é fundamental para atingir o objetivo que se quer com a leitura", ensina.

LIVROS PARA LIDAR COM AS EMOÇÕES

Para Denise Gentil, este momento de pandemia, livros como "O Monstro das Cores" e "Pode Chorar Coração, Mas Fique Inteiro" ajudam a organizar sentimentos
Para Denise Gentil, este momento de pandemia, livros como "O Monstro das Cores" e "Pode Chorar Coração, Mas Fique Inteiro" ajudam a organizar sentimentos | Foto: Gustavo Carneiro

De acordo com a leitora e empresária do setor de livros Denise Gentil - proprietária da Loja Ciranda: Brinquedos, Livros e Presentes - , nesse momento de pandemia, as famílias estão realmente vivendo perdas, mortes, distanciamento, e livros como o "O Monstro das Cores" de Anna Llenas e "Pode chorar coração, mas fique inteiro", escrito por Glenn Ringtved e ilustrado por Charlotte Pardi, servem para organizar sentimentos. "As famílias estão buscando tanto na literatura quanto nos brinquedos, formas de mostrar para as crianças que elas podem expressar seus sentimentos." A obra 'Pode chorar coração, mas fique inteiro', aborda de forma delicada a morte para as crianças.

Auxiliar a organizar as emoções também é a proposta da arte-terapeuta espanhola Anna Llenas na obra "O Monstro das Cores". Publicado originalmente em 2012, o livro vendeu mais de 200 mil exemplares na Espanha e foi traduzido para 16 idiomas. A história estimula as crianças a identificar as diferentes emoções que sentem, como alegria, tristeza, raiva, medo e calma por meio de cores. Por sua história cativante, "O Monstro das Cores" tornou-se o livro de cabeceira de milhares de famílias e educadores.

Estes livros, no momento, têm a preferência de muitos dos pequenos leitores que enfrentam a pandemia, na vida em família ou mesmo através de notícias, e precisam de um auxílio na compreensão do que significam a vida e a morte, o ganho ou as perdas afetivas.

INDICAÇÕES DE LEITURA

A bibliotecária Sueli Bortolin dá indicações de livros infanto-juvenis (dos 8 aos 12 anos

"Menino de engenho – José Lins do Rego (desde 1932)

A chave do tamanho – Monteiro Lobato (desde 1942)

Meu pé de laranja lima - José Mauro de Vasconcelos (desde 1968)

Flicts de Ziraldo Alves Pinto (desde 1969)

Os colegas - Lygia Bojunga Nunes (desde 1972)

A fada que tinha ideias – Fernanda Lopes de Almeida (desde 1975)

O reizinho mandão - Ruth Rocha (desde 1978)

Um amigo para sempre - Marina Colasanti (desde 1988)

DE OLHO NO VESTIBULAR

Matheus Augusto Gonçalves tem 18 anos, estuda no terceiro ano do Ensino Médio da rede pública e prepara-se para cursar Fisioterapia. Ele também faz cursinho. Sua rotina de estudos tem uma escala de horários. Com uma média de dedicação plena de cinco horas, Gonçalves realiza pequenos intervalos. "Acabo pegando dois a três tópicos por dia de assuntos para focar em uma linha específica. Exemplo, hoje vou estudar um pouco de Revolução Industrial, Geopolítica, Filosofia, Ética", cita.

Segundo o vestibulando, alguns amigos estão focando metade do dia lendo e escrevendo, mas é uma minoria. "Estão extremamente focados, só pensam no vestibular e estão tendo crise de ansiedade, de choro, sofrem achando que não vão passar e desabam, mas é uma minoria. A maioria não está nem aí nem aí para as aulas online oferecidas pelo governo. Tenho conhecido que diz que já desistiu e pretende repetir o ano porque não está conseguindo estudar. Mas uns usam isso como desculpa, pois temos vários meios para o estudo. Acredito que esses se sintam desmotivados porque não estão frequentando a aula presencial", observa.

Em relação à lista de obras literárias anunciadas pela UEL, o estudante afirma que desde o início do ano realizou a leitura de todas e um resumo. "Agora, no começo de novembro, planejei ler todas novamente. Sou uma pessoa que tem que treinar a leitura, eu me forço, lia bem pouco quando criança", admite. O jovem encontrou nas videoaulas seu melhor jeito de aprender. "Gosto muito de ouvir e aprendo muito assim".