O primeiro contato com os livros costuma vir muito antes da alfabetização. É no colo dos pais, avós ou educadores que muitas crianças descobrem o ritmo da linguagem, as imagens que contam histórias e o prazer de virar páginas. A literatura infantil e infantojuvenil é, para muitos, o início da formação como leitor e cidadão, e, por isso, carrega uma responsabilidade que ultrapassa o entretenimento: ela pode ensinar, acolher, ampliar a visão e despertar o pensamento crítico desde cedo.

Mas, se antes o foco estava em narrativas fantasiosas ou moralizantes, baseando contos de fadas em lições de vida, hoje os livros não evitam temas considerados difíceis, como perdas, sentimentos contraditórios, diversidade, racismo, meio ambiente e desigualdade social, por exemplo.

Ainda sob uma abordagem leve e adaptada à faixa etária, essa abrangência de temas reflete uma sociedade mais atenta às vivências das crianças e adolescentes e mais disposta a escutá-los.

LEIA TAMBÉM:

Festas juninas compõem estudos da rede municipal

No Brasil, Monteiro Lobato e Lygia Bojunga são exemplos de pioneirismo dessa mudança, que traz histórias mais ricas e complexas de forma acessível e instigante para os pequenos. Autores contemporâneos seguem na mesma lógica, promovendo uma literatura que dialoga com a realidade das crianças e adolescentes.

Para Yuri de Francco, autor de livros ilustrados, é possível tratar desses temas e construir uma boa obra mantendo o respeito à criança e à sua autenticidade enquanto ser pensante e questionador – do contrário, o resultado pode ser simplista e pouco construtivo para o seu desenvolvimento. “Uma boa obra literária para esse público é aquela que respeita esse lugar de pensar da criança”, considera o escritor, que foi duas vezes finalista do Prêmio Jabuti na categoria “Melhor livro para criança”, com os livros “O menino que virou chuva” (Editora Caixote), em parceria com o ilustrador Renato Moriconi, e “O menino, o pai e a pinha” (Ciranda na Escola), com a ilustradora Ionit Zilberman.

Para Yuri de Francco, "diversas linguagens colocadas numa obra literária dão ferramentas para que crianças e adolescentes possam enxergar o mundo de formas diferentes"
Para Yuri de Francco, "diversas linguagens colocadas numa obra literária dão ferramentas para que crianças e adolescentes possam enxergar o mundo de formas diferentes" | Foto: Tereza Grimaldi/ Divulgação

Francco destaca o potencial da combinação entre texto, imagem, projeto gráfico e outros elementos de um livro como parte do propósito da narrativa. No caso dos livros ilustrados – ou livros-álbum, como os que ele cria –, imagem e palavra se juntam na construção do enredo, oferecendo múltiplas camadas de leitura. “Essas diversas linguagens que são colocadas numa obra literária dão ferramentas para que crianças e adolescentes possam enxergar o mundo de formas diferentes, e isso também transforma os adultos que leem junto”, acredita.

METÁFORAS PARA TEMAS DIFÍCEIS

Na mesma linha, o escritor Jonas Ribeiro ressalta que educar em redomas e afastar os leitores de determinados temas nunca foi um ato inteligente. Para ele, tudo depende da abordagem escolhida. “Um livro pode ser contundente, direto, ou sutil, perceptível apenas por leitores muito atentos. Existem muitas metáforas para tratar de temas difíceis”, afirma.

Ele defende que todos os assuntos podem ser tratados, desde que se respeite a faixa etária e o alcance cognitivo do leitor: “Eu não vou trazer assuntos complexos para a educação infantil do mesmo modo que apresentaria para um adolescente. Mas posso, sim, introduzir esses temas aos poucos, de forma adequada”.

Jonas Ribeiro: "Um livro pode ser contundente, direto ou sutil, existem muitas metáforas para tratar de temas difíceis"
Jonas Ribeiro: "Um livro pode ser contundente, direto ou sutil, existem muitas metáforas para tratar de temas difíceis" | Foto: Divulgação

Ribeiro publicou mais de 185 livros e visitou mais de 1.600 escolas para contar histórias, declamar poesias e conversar com leitores. Para ele, trabalhar conflitos do universo infantil como medo, amizade, diversidade e ansiedade pode ter um efeito terapêutico. “Nesse caso, o livro vira quase um divã, um lugar de escuta e acolhimento, onde a criança consegue desatar nós, olhar para si, olhar para o outro e até desacelerar sua rotina”, reflete.

LIVROS E CULTURA

Celina Bodenmüller, autora de mais de 20 obras de ficção e não-ficção – muitos deles adotados em escolas brasileiras e norte-americanas – acredita que num livro cabe o mundo todo. Ela defende que a leitura pode abrir a mente para o novo e proporcionar não apenas prazer e emoção, mas também o encontro com diferentes culturas e formas de ver o que nos cercam. “Os livros trazem culturas, hábitos, formas, sociedades diferentes da que o leitor vive. Somando tudo isso, sem mencionar muitas outras possibilidades, tenho certeza de que o livro traz amadurecimento e tolerância, o que talvez seja a mais importante contribuição que ele pode dar ao desenvolvimento psíquico sadio de crianças e adolescentes”, diz.

Celina Bodenmüller: "O livro traz amadurecimento e tolerância, o que talvez seja a mais importante contribuição que ele pode dar ao desenvolvimento psíquico sadio das crianças"
Celina Bodenmüller: "O livro traz amadurecimento e tolerância, o que talvez seja a mais importante contribuição que ele pode dar ao desenvolvimento psíquico sadio das crianças" | Foto: Divulgação

LITERATURA COMO CURA

As mudanças na literatura infantil e juvenil, com narrativas mais sensíveis, complexas e conectadas ao cotidiano das crianças, também transformaram o papel das bibliotecas públicas. Os espaços, conhecidos por facilitar o acesso ao livro, se tornaram locais de escuta, mediação e acolhimento emocional. É o que mostra a experiência de Leda Maria Araújo, bibliotecária à frente das Bibliotecas Públicas Municipais de Londrina e referência nacional em políticas públicas de leitura.

Nos últimos anos, Araújo passou a se aprofundar em uma abordagem que considera essencial: a biblioterapia, que consiste no uso da literatura como ferramenta para lidar com emoções e sentimentos. “É a cura emocional por meio das palavras, das histórias, da poesia. Uma forma poderosa de ajudar crianças e adolescentes a ressignificarem experiências como medo, ansiedade, luto e conflitos internos”, explica.

Ela lembra um episódio marcante durante uma atividade de contação de histórias em um centro de educação infantil, em 2008. Após narrar a clássica “Chapeuzinho Vermelho” para cerca de 25 crianças, uma delas levantou a mão e comentou: "Tia, a vovozinha saiu da barriga do lobo, mas ontem o meu pai não saiu do caixão."

A intervenção inesperada foi um alerta para a educadora sobre a profundidade das vivências infantis e o potencial da literatura em acessá-las, o que exige uma responsabilidade sobre a literatura. “Desde então, nunca mais terminei uma história com ‘e foram felizes para sempre’. Porque, na vida real, independente da idade, nós nunca somos felizes para sempre”, pondera.

A biblioterapia, segundo ela, passa por uma escolha consciente das histórias, respeitando a faixa etária e a maturidade emocional dos leitores. Com uma mediação cuidadosa, é possível ajudar pessoas a lidarem com os mais diversos traumas de forma significativa, principalmente os pequenos, que podem encarar os contos como espelhos. “A história certa pode ensinar, transmitir valores, fortalecer a autoestima e até curar. A criança se vê ali, na narrativa, e a partir disso, começa a compreender melhor seus sentimentos”, diz.

Para Leda Maria Araújo, a biblioterapia é uma  forma de ressignificar experiências como medo, ansiedade, luto e conflitos internos
Para Leda Maria Araújo, a biblioterapia é uma forma de ressignificar experiências como medo, ansiedade, luto e conflitos internos | Foto: Divulgação

LEITURA NO BRASIL

Embora os livros infantis e juvenis estejam cada vez mais preparados para atender às demandas das novas gerações, os dados mostram que o hábito da leitura no Brasil ainda enfrenta fragilidade. Segundo a 6ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro em 2024, mais da metade da população brasileira com cinco anos ou mais, sendo 53%, não leu sequer um trecho de livro nos três meses anteriores ao estudo, o maior índice de não leitores desde 2007, ano da primeira edição.

No entanto, entre as crianças de 5 a 10 anos, mais de 80% disseram gostar de ler, revelando um potencial ainda forte de engajamento nessa fase inicial. Já na faixa de 11 a 13 anos, o levantamento identificou o maior percentual de leitores entre todas as idades, indicando que essa pode ser uma etapa decisiva para consolidar o vínculo com os livros.

Os índices mostram que, apesar da queda geral no hábito de leitura, há interesse e abertura na infância e pré-adolescência. Cabe às famílias, escolas, bibliotecas e políticas públicas aproveitarem esse momento para ampliar o acesso e oferecer histórias que façam sentido para esses leitores. Histórias que acolham, desafiem, divirtam, curem e que possam acompanhar as crianças em seus medos, descobertas e sonhos.

mockup