Entre as décadas de 1940 e 1960, Londrina era conhecida por sua rica produção cafeeira. Ostentava com orgulho o título de “Capital Mundial do Café”. Paralelamente, a cidade também era conhecida como a “Capital Nacional Prostituição”. Um título que a historiografia oficial da cidade procurou apagar dos registros.

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Essa fama silenciada pela história oficial da cidade é resgatada pelo historiador Edson Holtz Leme no livro “Noites Ilícitas” lançado pela Eduel. Publicado originalmente em 2005, ganhou uma segunda edição revisada e atingiu, agora em setembro, a marca de mais de mil exemplares vendidos. Uma marca rara para uma dissertação de mestrado sobre a história de Londrina – um best-seller da editora da UEL.

A obra revela que, para higienizar o centro da cidade, em 1949 foi criada a Vila Matos. Um território (onde hoje se situa a rodoviária) que abrigava mais de 100 casas de prostituição e boates com uma população de aproximadamente 5 mil profissionais do sexo. Um lugar que fervia as noites da cidade.

A zona de Londrina ganhou notoriedade tamanha que foi considerada uma das maiores zonas de prostituição do Brasil nas décadas de 1950 e 1960. As casas da Vila Matos foram completamente derrubadas em 1966, seguindo outro processo de higienização.

A seguir, Edson Holtz Leme fala sobre “Noites Ilícitas” e como as lembranças da Vila Matos ainda habitam o imaginário dos londrinenses.

“Noites Ilícitas” chegou à marca de mais de mil exemplares vendidos, uma marca surpreendente para uma dissertação de mestrado sobre a cidade de Londrina. A que você atribui esse interesse dos leitores?

Acredito que este fenômeno se deve a dois fatos. Primeiro e o que chama mais atenção dos leitores, diz respeito ao tema: prostituição. As questões relativas à sexualidade, de uma forma geral, atraem a curiosidade das pessoas. Aí não importa se a pessoa é conservadora ou não, a curiosidade a impele a buscar informações sobre os chamados temas tabu. E a sexualidade, historicamente falando, sempre ocupou um lugar de alcova, de segredo, do não dito. E saber que Londrina teve uma zona boêmia tão famosa, mas ao mesmo tempo silenciada, fez com que aumentasse a procura pelo livro. E o segundo fato diz respeito à escrita do livro. Apesar de ter origem na academia, a escrita se aproxima da literatura. Ela flui e acaba envolvendo os leitores. A narrativa, intercalada por documentos da época, revela uma Londrina boêmia que muitos londrinenses não conheciam.

E como era o cotidiano boêmio dos bordéis da Vila Matos?

Na época de ouro da Vila Matos inúmeros shows aconteciam nos bordéis mais luxuosos. Shows com cantores como Orlando Silva, Carlos Galhardo, Nelson Gonçalves, as cantoras como Dalva de Oliveira, Emilinha Borba, Dercy Gonçalves e Angela Maria, eram corriqueiros. Essas atrações movimentavam a zona boêmia. Prostitutas de São Paulo, Rio de Janeiro e até de outros países chegavam ao aeroporto de Londrina nas sextas à tarde. Os aviões passaram a ser conhecidos como “balaios de p...”. Era comum os homens andarem armados naquele período. Isto fazia com que as casas de tolerância, como eram chamadas, tivessem seguranças e até um local reservado para que os clientes deixassem suas armas. Prazer e violência andavam juntos quando se misturavam disputa por mulheres e bebidas nas noites boêmias. Para as prostitutas o atendimento aos clientes se iniciava já no final da tarde. Às duas da manhã, quando as casas começavam a fechar, boêmios e prostitutas se reuniam no restaurante do Toninho para tomar a famosa canja da madrugada. Festa e dinheiro não faltavam nunca. Era a “orgia do café” nos seus melhores tempos.

O livro mostra que Londrina era famosa por ter uma das maiores zonas de prostituição do Brasil nas décadas de 1950 e 1960, mas isso não aparece na história oficial da cidade. Por quê?

Temas relativos à sexualidade sempre tiveram, e ainda tem, pouco espaço na chamada “história oficial” de cidades, estados ou países. Até porque quando falamos de uma “história oficial” estamos identificando uma narrativa que se pretende hegemônica e única sobre o passado. Faz-se uma “higienização social” dessa memória coletiva. Celebram-se os que deram certo, se enriqueceram. Já as figuras furtivas, que habitam as margens, são colocadas debaixo do tapete da História. No caso de Londrina é recorrente a idealização da colonização, feita pela Companhia de Terras. Acabam também por forçar uma origem “britânica” para a cidade. Quando na verdade a região já era ocupada pelos povos originários: kaingangs, guaranis, coroados, dentre outros. E nossa cidade teve uma formação plural com inúmeros imigrantes e migrantes. Com toda essa limpeza das referências populares, como abrir espaço para as histórias envolvendo a zona boêmia?

Você aponta em “Noites Ilícitas” que, apesar da história da Vila Matos ter sido silenciada pela história oficial, ela permanece viva na memória dos londrinenses. Existe uma nostalgia no imaginário das pessoas. Como você explica isso?

Não nasci em Londrina. Sou paulista e vim para a cidade em 1981, fazer o curso de História na UEL. E durante meu curso nunca ouvi uma referência sobre a história da zona londrinense. Quando resolvi fazer a pesquisa me surpreendi com o número de londrinenses que conheceram a zona boêmia, especialmente os homens que a frequentaram. Mesmo mulheres mais idosas se lembravam, ainda que fossem impedidas de se aproximar do território, a elas, proibido. Era muito engraçado quando abordava senhores idosos e perguntava sobre a Vila Matos. A primeira coisa que me diziam era: “Eu não saía de lá! Todos os meus amigos também. Aquilo era uma maravilha”. A zona não era apenas o local de iniciação sexual masculina, era um espaço de sociabilidade. Além das boates havia bares, restaurantes, shows. E esse lembrar com nostalgia, desses já idosos senhores, remete há uma época em que frequentar a zona boêmia atestava suas respectivas masculinidades.

Hoje Londrina se define como uma cidade conservadora. Você estabelece alguma relação entre a Londrina atual e a cidade que convivia com a Vila Matos?

Não. São momentos históricos diferentes com suas especificidades, também diferentes, relacionadas principalmente ao campo da moral e dos costumes. A zona boêmia das décadas de 1940, 1950 e 1960, faziam parte do cotidiano masculino da cidade. Ainda que ilícita era tolerada socialmente. Quem mais sofria pelos mecanismos de controle policial e de cerceamento de movimento pela cidade eram as prostitutas. A maioria permanecia confinada nas casas em que trabalhavam. As saídas, quando permitidas, restringiam-se a ida a médicos, cabeleireiros e às matinês no Cine Ouro Verde. Atualmente as redes sociais permitem um acesso visual à sexualidade até então impensáveis no século 20. O que temos de diferencial hoje é, especialmente por parte de partidos ligados à chamada extrema-direita e também de setores religiosos ultra-reacionários, a defesa de uma pauta conservadora de costumes com fins políticos.

Imagem ilustrativa da imagem Zona boêmia de Londrina: uma história silenciada
| Foto: Divulgação

SERVIÇO:

“Noites Ilícitas”

Autor – Edson Holtz Leme

Editora – Eduel

Prefácios – Antonio Paulo Benatti, Margareth Rago e Eduardo Bastos Albuquerque

Páginas – 258

Quanto – R$ 57 (papel) e R$ 33 (e-book) Onde encontrar – www.eduel.com.br