Woody Allen, com 'O Festival do Amor', ataca a indústria do cinema
Filme repete cenas de clássicos do cinema em tom cômico e características de outras produções do diretor
PUBLICAÇÃO
quarta-feira, 05 de janeiro de 2022
Filme repete cenas de clássicos do cinema em tom cômico e características de outras produções do diretor
Sérgio Alpendre/ Folhapress
A cada estreia de um filme de Woody Allen, não são poucos os críticos que lembram a falta de criatividade do diretor nos últimos anos ou da necessidade de separar criador e obra para julgar um filme pelo que ele é, não pelas acusações de abuso e pedofilia que têm prejudicado a carreira do cineasta há alguns anos.
Há também a ideia de que ele faz "sempre o mesmo filme", com características que se repetem exaustivamente e o humor verborrágico padrão em seu cinema.
Não será "O Festival do Amor" que romperá esse círculo vicioso de recepção, tanto por não ser uma de suas obras mais inspiradas, como por ter os mesmos elementos que têm provocado uma série de críticas à sua carreira recente, por mais que "Magia do Amor", de 2014, "Café Society", de 2016, e "Roda Gigante", do ano seguinte, sejam admiráveis.
O novo filme leva o cineasta à belíssima San Sebastián, no norte da Espanha, onde acontece anualmente um festival de cinema dos mais prestigiados. Seu alter ego é o personagem de Wallace Shawn, um professor de cinema chamado Mort Rifkin, casado com Sue, uma agente publicitária vivida por Gina Gershon. Ele a acompanha ao festival para o lançamento do novo filme de Philippe, um jovem e promissor cineasta interpretado por Louis Garrel.
O paralelo que se pode fazer é com "Dirigindo no Escuro", sátira mordaz do mundo do cinema, em que a crítica francesa gosta de filmes mal dirigidos e a indústria não poupa diretor que fez filme malogrado.
Essa crueldade de observação e ironia é bem menor em "O Festival do Amor". Como o cineasta está mesmo acomodado, este último oferece mais uma trama simples de relacionamentos em crise, na qual Sue se apaixona por seu cliente e Mort se apaixona por uma médica, interpretada por Elena Anaya, arrumando os pretextos mais absurdos para marcar consulta com ela.
Algumas falas de Mort parecem mesmo sátiras, como as que defendem, em termos bem simplórios, a superioridade dos grandes mestres europeus da nouvelle vague francesa e outros movimentos de cinema moderno sobre o cinema americano, que seria de entretenimento. Essa divisão entre arte e entretenimento é o suprassumo da cinefilia de primeira ocasião que costuma consumir sem questionar tudo que apareça com o indefectível verniz artístico.
Citações cômicas
Allen não ajuda ao refilmar em tom cômico, mas de modo preguiçoso, cenas marcantes de filmes como "Oito e Meio", "Acossado" ou "Morangos Silvestres". Fala obviamente com seu público, aquele do gosto médio, que sempre foi fiel a seus filmes, mesmo os mais sofisticados. Esses clássicos europeus são valiosos e merecem figurar num cânone cinematográfico.
Mas o que acontece em "O Festival de Amor" se assemelha a um álbum com versões para fundo de conversa de músicas que marcaram outros tempos - uma salada cinematográfica de gosto duvidoso. Allen costumava ser muito mais inteligente nas citações cinematográficas.
Se há um bom motivo para vermos este novo filme do cineasta, ele é menos a encenação, inferior à dos primeiros filmes com Vittorio Storaro, do que na costumeira acidez de algumas falas, sobretudo as de Mort, como também na performance do elenco.
Wallace Shawn faz razoavelmente bem o típico protagonista de Allen, o nova-iorquino neurótico e hipocondríaco. Elena Anaya entra na imensa galeria de grandes interpretações femininas no cinema do diretor. Sergi López está ótimo como o marido da médica e Gina Gershon convence bem como a mulher dividida entre a empostada seriedade do marido e a frivolidade dos festivais de cinema.
A caracterização de Philippe como um jovem diretor de falas tolas e hábitos caricaturais é outro acerto. Além de aproveitar a baixa capacidade interpretativa de Louis Garrel, soa como uma crítica de Allen à transformação do cinema em mercado e à indústria de celebridades.
A crítica mais inteligente do filme, porém, é uma fala do próprio Philippe. "Hoje em dia, qualquer filme que trata da realidade é tomado pelos críticos como arte", diz o personagem de Garrel. É o libelo de Allen contra os oportunistas do cinema sociológico e pelo imaginário como motor vital para a criação artística.
SERVIÇO:
O Festival do Amor
Quando: Estreia nesta quinta (6)
Classificação: 12 anos
Elenco: Wallace Shawn, Gina Gershon, Louis Garrel
Produção: Espanha, EUA, Itália, 2020
Direção: Woody Allen