De sono e sonhos a nossa vigília
ReproduçãoUma das mais intrigantes necessidades fisiológicas do ser humano, o sono, não bastasse o tempo em que nos põe literalmente fora do ar, naquilo que a poesia antiga chamava de ‘‘morte provisória’’, é o meio e a via, embora tudo o que a psicanálise e as pesquisas neurológicas já tenham desvendado, para outra fonte de mistérios - os sonhos - ali onde move-se a nossa talvez mais radical liberdade. É nele, no sono de cada noite, ou de cada dia, que, senhores de asa e vôo, somos capazes até mesmo do improvável que vige em nós feito um futuro.
Dá para dizer que em sonhos o homem sempre pôde tudo, cabeluda audácia frente à nossa pobre vida cotidiana - invariavelmente carente e precisada, invariavelmente demarcada por estreitos limites. No entanto, seguimos dormindo e sonhando, sem atentar muito para a inquietante estranheza disso.
Não os sonhos, matéria de memória, mas o sono mesmo, o velho e prosaico sono, acaba de ser objeto de ampla pesquisa do Instituto Nacional de Saúde Bethesda, dos Estados Unidos, só agora divulgada no concorrido simpósio ‘‘Neurobiologia e Patologia do Sono’’, da Fundação Ramón Aceres, levado a efeito esta semana em Madri reunindo ‘‘sonólogos’’ de todo o mundo.
As conclusões são, no mínimo, surpreendentes - além de obviedades sobre os prejuízos da insônia, entre elas as de que poucas horas de sono encurtam a vida, há verdadeiras pérolas, como esta de que o homem atual dorme muitíssimo menos do que seus antepassados, pelo simples fato de que a luz artificial nos obriga, os contemporâneos, a permanecer muito mais tempo em vigília. Não bastasse o colesterol, as lesões por esforço repetitivo, o stress do trânsito e a violência em cada esquina das grandes cidades, a nós, os curiosos deste já virtual terceiro milênio, ainda nos sobra uma quase sempre indesejável vigília.
Também o estado hipnagógico (aquela fronteira entre o sono e a vigília, seja ao despertar ou ao adormecer) foi alvo dos criteriosos estudos do Bethesda norte-americano. Se os artistas (até mesmo, pasmem, os videomakers) já tentaram reproduzir o que se passa conosco neste igualmente inquietante ‘‘estágio’’ da mente humana, a ciência recente não ficou por menos - devassou-nos o hipnagogismo ali onde anjos e duendes, lembranças imemoriais calcadas indeléveis no inconsciente ‘‘cósmico’’ e até mesmo o diálogo com outros mundos se dão - sem que percebamos ao certo onde o sonho ou o pesadelo, onde a lucidez e a loucura. Mas ficou, embora anos de esforçados exercícios, praticamente no pouco, ou quase nada, do que já sabemos.
Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia - diz o verso do poeta imortal, tão imortal que continua valendo para estes nossos atribulados dias, pois, acredite, vigilante leitor, a conclusão maior do simpósio a que estas linhas se referem é a de que, em matéria de sono, não dá para se chegar a conclusão alguma. O que parece um disparate mas é mais líquida e honesta assertiva.
A ciência não sabe, e não saberá tão cedo, o que é o sono, por que dormimos e como se processam os mecanismo célulo-moleculares engajados na produção do fenômeno tão velho quanto o homem e ainda tão supremamente desconhecido, alvo fácil de toda sorte de ‘‘interpretações’’ - dos chutes metafísicos às disssecações neuro-científicas, passando, claro, por esoterismos vários.
Sem referir, e é o que, em última instância, conta, a Poesia, capaz de duvidar de que à noite realmente dormimos, preferindo crer que, seres presos aos exíguos limites terrenos, é no sono que saímos um pouco de nós mesmos e levamos a nossa alma a passear nos campos do Senhor...