ReproduçãoUm mistério kafkquiano
As anotações empreendidas por Kafka (1883-1924), à margem do manuscrito de uma de suas obras mais célebres, ‘‘A Metamorfose’’, é um dos grandes mistérios literários do século XX. Muita gente sabe que existiram mas ninguém até aqui para informar se autêntica a escrita gótica, de delicada artesania e em perfeito alemão, com que, diz-se, Franz Kafka inscreveu, nas bordas de umas folhas de papel, cortantes reflexões hoje dadas como completamente desaparecidas.
O piedoso Max Brod, o sempre amigo do gênio tchecoslovaco, é quem relata esta história quase patética, urdida no rigoroso inverno europeu de 1925, quando, considerada perdida, uma das versões de ‘‘A Metamorfose’’ reapareceu, dez anos após a publicação do livro em Praga por um quase obscuro livreiro alemão. Como se sabe, ‘‘Die Verwandlung’’ é um dos raros textos kafkianos publicados em vida do autor.
Segundo Max Brod, os manuscritos, criteriosamente amarrados com um cordão verde, não possuíam mais que 60 folhas de um ordinário papel que se desfazia com facilidade e estavam no fundo de uma caixa de papelão. Como o biógrafo de Kafka pôde comprovar, à margem do texto, além dos característicos desenhos do escritor, mínimas figuras sem rosto tocadas de um bailarino movimento, ele teria grafado aforismos, máximas, provérbios e, sobretudo, crudelíssimos comentários em torno do impagável Gregor Samsa, o personagem principal de ‘‘A Metamorfose’’.
Max Brod atribui às sucessivas mudanças de endereço a que foi obrigado naqueles tormentosos dias do inverno de 1925, a perda definitiva da caixa com a legendária versão da novela e as preciosas anotações que a acompanhavam. Há um segundo manuscrito, bem mais simples, apenas com a curta e torturante epopéia ‘‘doméstica’’ do pobre-diabo Samsa, guardado no cofre de um museu dedicado a Kafka, em Praga. Mas este é desinteressante como todo manuscrito. Serve apenas a especialistas na chamada crítica genética, um ramo da ensaística que investiga a gênese das obras literárias. Não possui, da versão perdida, o triunfo de uma mente acesa às voltas com um dos mais célebres personagens da história das Letras.
Os míticos originais de que aqui se trata, estes, não, – a confiar na memória de Max Brod, que relatou o fato, ainda antes da Guerra, a uma revista alemã, neles Franz Kafka pôs quase outro livro, ao tecer considerações de aguda lucidez sobre Gregor Samsa, não poupando críticas à sua desvelada mãe e, culpando-a, mais que ao pai, (fixa obsessão do escritor...), pelo martírio da transformação do personagem em asquerosa (e impotente) barata. Até hoje não se sabe porque à mãe de Samsa devemos o seu diligente martírio... Dessas indagações que acabam caindo na lixeira da História sem respostas jamais.
E entre as surpreendentes anotações à margem do manuscrito, Max Brod dizia que se lembrava vagamente, pelo ardente inusitado, ao menos de uma delas, pois mesmo ele não chegou a lê-las por inteiro, e se referia a um intrigante apontamento de Kafka, em letra miúda, num dos vértices do papel: ‘‘Gregor Samsa é só a invenção sombria de um homem com saudades de seu cão’’.
Um pouco mais abaixo, o micro-desenho do cachorro de Kafka, morto à época em que concluiu ‘‘A Metamorfose’’ – o também para sempre célebre Ing, o cocker spaniel que ganhou de Milena na cálida noite de um de seus aniversários, coisa que não deixa de registrar nos ‘‘Diários’’ sem conseguir esconder, entretanto, uma certa ponta de inadvertido nojo. Já era a Morte e seus ovos; já era um Homem e seu cão.
Que de outras cintilâncias torturadas nestas páginas para sempre perdidas?