Há 26 anos mandei uma carta por fax para o poeta Waly Salomão porque toda vez que eu tentava fazer uma ligação telefônica era recebido pela gravação na secretária eletrônica: “... a memória é uma ilha de edição...”, ‘A MEMÓRIA É UMA ILHA DE EDIÇÃO”... e o sinal de fax apitava. Pensei em tentar contato com algo por escrito então e mandei o fax assinando como QuickSILVIO Messanger (tal como a banda psicodélica).

Estava passando alguns dias na casa dos meus pais . O telefone toca. Atendo. “Diga trinta e três”. Obedeci. “Trinta e três”. Era o poeta Waly Salomão. Algum tempo depois fui ao Rio de Janeiro entrevistá-lo para a minha dissertação de mestrado sobre a coluna Geleia Geral de Torquato Neto. Achei a fita k-7 numa gaveta aqui em casa e com a ajuda do pessoal da Rádio UEL deu para recuperar essa conversa que aconteceu num boteco no dia 10 de novembro de 1997, uma segunda-feira (a data marcava exatamente 25 anos do suicídio de Torquato).

LEIA TAMBÉM:

Tom Constanten: o que o piano e o telescópio têm em comum

Clássicos brazucas que completam meio século este ano


Conversamos sobre Torquato Neto e a importância de sua militância cultural na imprensa, sobre o cinema de Júlio Bressane e terminamos com um verso de Robert Hunter, letrista do Grateful Dead.

Torquato Neto foi um jornalista, poeta e compositor fundamental do tropicalismo. Em sua coluna no Última Hora desenvolveu um estilo singular de texto experimental que Waly brilhantemente compara aos mosaicos. Foi Waly, aliás, que junto com a viúva de Torquato Neto, a artista gráfica Ana Maria Duarte, coligiram os escritos de sua obra “Os Últimos Dias de Paupéria” – um livro emblema daquela geração. Torquato suicidou-se em 1972.

Waly faleceu em 2003 e deixou como legado sua poesia desdobrada nos seus livros e canções. Parceiro de Gal, Bethânia, Caetano, Gil, Jards Macalé, entre outros. Torquato e Waly foram figuras fundamentais na contracultura brasileira.

Editei a transcrição colocando em negrito as minhas falas e deixando o fluxo das palavras de Waly transcorrer da maneira fractal como era sua personalidade.


Estou colocando aqui de longe que é pra ver como fica a altura da gravação...Vou deixar então o gravador aqui meio que camuflado....que é pra não incomodar...

Então eu vou descamuflar... já tá ligado?

Já...

Então... e a coluna de Torquato, de um ponto de vista... era dentro de um grande jornal, a Última Hora daquela época, que então era um grande jornal. Você acordava, havia um vício, uma necessidade muito grande de ingerir a Geleia Geral logo. Como você acorda e corre pra comer um pão quente, num é? Um pão recém saído do forno. Não é... e Torquato era assim. E era uma coluna como um mosaico espatifado. Eram notinhas ou um tema inteiro dominando. Variava conforme variava o temperamento de Torquato e cada dia tinha essa mudança de temperatura. Torquato escrevia cada vez mais de um modo exasperado. Então a coluna dele foi uma incursão revolucionária, uma explosão mesmo. Uma supernova dentro do quadro relativamente estagnado da imprensa da época. Sempre com.. até hoje mesmo.. da época parece que hoje... não, não é. Outro dia eu falei no programa de Pedro Bial que estranho é você abrir um jornal e ver assim, bem grande, um tipo de chamamento ao leitor assim.. “alô alô idiotas”. Isto é de uma radicalidade kamikaze. É um torpedo suicida mesmo, entende. Isso já está jogando de fora qualquer ideia liberal de mormaço, de mediania, de você converter pessoas num apostolado da escrita. Não. Já é estourar esses limites. Isso Torquato fez com uma agressividade sem limites, né? Em tudo que Torquato entrou ele entrava e abria essas picadas, essas veredas e explodia também os caminhos de retorno à normalidade consuetudinária, a normalidade cotidiana. Ele fez isso. Jogava realmente dinamites. Podemos equivaler a ação dele de agitação ao agitprop do Maiakovski. É claro que olhando as devidas diferenças entre a situação russa, logo após a subida dos soviéticos ao poder e, nesse caldo, a de Torquato durante a ditadura militar brasileira. Mas o que estou falando é e todos dois são suicidas. Certo? E é essa vontade de não deixar resto, não preservar nenhuma areazinha em que você não estoure, não é?

Tem uma frase do Nietzsche que eu sempre lembro quando penso no Torquato que tá em "Além do Bem e do Mal", ele diz o seguinte: "O poeta, o verdadeiro poeta, não tem pudor em relação as suas próprias experiências. Ele as explora."

Ah! Como um traidor! É assim não é? Como traidor ele espiona. Espiona... Não sei se essa coisa de traidor já vai estar em outro livro. Talvez nos escritos póstumos. Certo. Que venha ser juntado por aquele nome Vontade de Potência, onde ele fala que espiona a si mesmo como um traidor, né?

Capa da primeira edição de Os Últimos Dias de Paupéria, de Torquato Neto, publicada em 1973
Capa da primeira edição de Os Últimos Dias de Paupéria, de Torquato Neto, publicada em 1973 | Foto: Reprodução

E assim eu acho que tem também essa coisa de não encarar o jornalista ...

Existia um lado assim... uma imprensa submissa aos postulados da ditadura policial militar que imperava no Brasil, por outro lado existia o pessoal da esquerda bem pensante. O partidão com suas lutas, suas tarefas, suas coisas. E Torquato foi esse cometa luminoso e exclusivo que passou no céu da imprensa nanica brasileira. Ele foi um... a coluna dele tinha uma grande generosidade, né? Ela era aberta. É tanto que você mesmo no texto confunde um texto meu e atribui a Torquato um texto meu de apresentação do Chacal. É exatamente porque era uma zona livre. Um território livre equivalente ao que Cuba foi para nossas cabeças não é? E Cuba como a "Geleia Geral" era um território livre. E essas diferenças então abrigavam uma tradução de Augusto de Campos ou de Haroldo ou do Décio do Dante, ou então um texto que o Hélio Oiticica podia mandar sobre Mondrian e Ângela Maria, ou Waly sobre Chacal ou Waly falando de outras coisas... E tem pra mim, no que me diz respeito, a tem uma coisa extraordinária que é aquele reconhecimento dele de que vendo o show Gal Fa-Tal ele descobriu de novo ter fé nas palavras, não é? Eu acho que o poeta não pode perder a fé nas palavras, né? E ele diz, atribui aquilo, me atribuiu em conversas particulares, mas isso pode parecer advogado em causa própria já que ele não está presente na terra. Como ser vivo. Mas o bom é que está ali documentado a uma expressão dele muito clara disso, vamos ao que você, eu acho que tudo tá dito, e acho que você nem precisa me ouvir como orientador de uma tese. O que tenho com você e quero deixar até registrado, é uma relação de cumplicidade afetiva. Por um estranho caminho, desde o momento que você manteve contato comigo, eu lhe devolvi...cheguei em casa e ouvi o seu recado. Devolvi logo seu telefonema e corri logo para o correio para te mandar as coisas e temia talvez não gostar de você pessoalmente tanto quanto tinha gostado. Mas tal fato não se deu. Então eu acho... ao contrário, tive uma afinidade eletiva com você. Então acho que você tem é que ter é culhão pra levar o trabalho com coragem, com ousadia. Porque vejo assim, textos sobre a imprensa da época, a imprensa nanica. A imprensa alternativa da época e o nome de Torquato é obliterado. Há um ostracismo, mas esse ostracismo não pense que seja ingênuo não. Torquato comprou muitas brigas. Era quase uma metralhadora giratória. Ele era extremamente descentrado e disperso. Então ele girava a metralhadora para muitos alvos ao mesmo tempo. Nesse ponto ele não foi um contido. Não se pode olhar Torquato assim. Mas ao mesmo tempo ele soube ter uma boa tesoura seletiva e escolheu a gangue dele, um clã dele no qual eu estou incluído, o Hélio Oiticica, o Júlio Bressane... aliás, você devia aproveitar a sua estadia no Rio e ver o novo filme do Júlio... "Miramar." É belíssimo. É belíssimo! Não é mais ou menos... e a minha mulher é a produtora do filme. Minha empresa Kabuki é que possibilitou tudo. Mas não é por isso. É um filme... É o Júlio Bressane na sua quintessência. É o Júlio dos seus momentos mais altos, dos pontos luminosos. É uma beleza e também com essa mesma qualidade de radicalidade estética total. Não faz um cinema medianeiro. Faz um cinema de invenção até o grau do insuportável.

Eu vi uma cena... da saia

Você viu uma cena aonde?

Aquela da menina... quando ela senta a saia se esparrama ... aquilo é muito lindo.

Cê vai ver. Você tem que ver. Tá, se eu não me engano, na Estação Botafogo. Você tinha que ver. Não sei se seus primos, sua prima podem... mas você tinha que ver. Você não precisa muito me ouvir. Eu já sou é cúmplice seu, cara. Entende. Eu já vi essas coisas na sua carta, eram claras para mim. Eu já estou contigo e não abro. Ontem estava sentado nesse mesmo bar e tinha um adesivo desses meio cafonas de alguém que vai ser candidato para o ano e estava assim... “tô com Mazinho e não abro”. Eu tô com você e não abro, cara.

Pô, legal!

Tente que essa tese sua tenha que ter a sua implicação, o seu envolvimento. Diz esse verso:

“Dark star crashes pouring its light into ashes...”

Isso tinha que ser epígrafe de capítulo de alguma coisa...

“A estrela escura explode, arrebentando sua luz em cinzas”

Exatamente. Era isso que eu ia lhe dizer. Devia virar epígrafe sua, nem que seja de capítulo. Em inglês e a tradução. Isso é lindo. Tem que ter você. Eu quero ver o Mercúrio dentro.

*

Silvio Demétrio é jornalista e professor do curso de Jornalismo na UEL. Escreve a coluna A Dobra, às sextas-feiras, na FOLHA.

Confira, Waly Salomão fala sobre poesia