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. | Foto: Alexandre Battibugli/Divulgação


A escravidão pode ser considerada como uma das maiores pedras no sapato da História do Brasil. E permanece, ao longo de séculos, como pedra no sapato pelo simples fato de que nunca foi encarada com a humanidade necessária.

As pesquisas mais recentes de historiadores e antropólogos revelam que, grande parte daquilo que o senso comum conhece sobre a história da escravidão no Brasil, não passa de um conto do vigário. Ou história para boi dormir.

E essa é realmente a sensação do leitor ao percorrer as páginas de “Escravidão”, trilogia do escritor paranaense Laurentino Gomes. O volume inicial, “Escravidão, Volume I – Do Primeiro Leilão de Cativos no Brasil até a Morte de Zumbi dos Palmares”, foi publicado em 2019 e recebeu o Prêmio Jabuti de 2020. O volume sequente, “Escravidão Volume II – Da Corrida do Ouro em Minas Gerais até a Chegada da Corte de Dom João ao Brasil”, acaba de ser lançado pela editora Globo. O último volume, dedicado ao movimento abolicionista que culminou na promungação da Lei Áurea em 1988, está previsto para ser publicado em 2023.

“Escravidão, Volume II” focaliza a história da escravidão especificamente no século 18, época em que o ciclo colonial do ouro ocupa o lugar do ciclo da cana-de-açúcar. Época em que a região das Minas Gerais concentrou a maioria dos escravos africanos cativos no Brasil.

Laurentino Gomes relata como os escravos que atuavam na extração de ouro e diamantes, imersos em todo tipo de sofrimento e crueldade, criaram uma riqueza nunca vista para a Corte Portuguesa. Uma fortuna torrada displicentemente em pouco tempo pelos nobres imperiais portugueses.

A tese de Laurentino Gomes é de que o sistema escravocrata nas Minas Gerais teve peculiaridades únicas, completamente distintas das outras regiões ou atividades como os engenhos de açúcar. A primeira delas seria a de não havia grandes donos de escravos. Pelas próprias especificações e controle do garimpo, havia muitos “senhores” com poucos escravos. A segunda seria a de que, ao encontrar uma grande pepita de outro, ou um grande diamante, o escravo poderia ganhar a alforria, se tornar liberto.

A terceira peculiaridade estaria nas mãos das mulheres escravas, uma minoria diante de grande maioria de homens. Os portugueses compravam escravas jovens com “o propósito deliberado de servir como objeto sexual”. As escravas, nessa situação, com o passar do tempo, conseguiam a alforria dos filhos com o batismo, e posteriormente, a própria alforria após a morte de seu proprietário.

Um dos exemplos presentes em “Escravidão, Volume II” está na figura de Chica da Silva, sobre a qual foi criada uma imensidão de lendas, causos, ficções, fofocas e muito mais. Os documentos mostram apenas que Chica foi comprada, ainda na pré-adolescência como “objeto sexual”. Teve o primeiro filho na adolescência e foi propriedade de três “senhores”. Com pouco mais de 30 anos tinha parido 14 filhos, todos libertos após o batismo católico. Sua própria alforria teria ocorrido somente após a morte de seu terceiro e último proprietário.

Nas palavras do autor: “Embora tenha nascido escrava e vivido em cativei até a idade adulta, Chica, depois de alforriada, foi dona de mais de 100 cativos. E nunca se empenhou em libertá-los. Como era de costume no Brasil colonial, Chica fez questão de batizar todos seus escravos na Igreja Católica, de modo que participassem das irmandades de negros e mestiços.”

Ao lado de outros exemplos como o de Chica da Silva, Laurentino Gomes apresenta outra tese. A de que existiam dois movimentos paralelos entre os escravos africanos em solo brasileiro. O movimento da batalha pela liberdade e o movimento de adaptação ao sistema escravocrata. O movimento dos quilombos rebeldes e o movimento individual de aceitação da condição de escravo como uma esperança pacífica de uma melhor das condições de vida. Um assunto complexo.

Dois movimentos que seguiram paralelos, mas em vários momentos e situações se cruzaram com a vida brasileira. Não com existência do Império, ou com a existência de “donos de gente”, mas com a mais básica e simples vida cotidiana que um ser humano necessita: família, casa, trabalho. Ou seja, em várias situações os escravos teriam aceitado a condição de escravo apenas para ficarem com algum fiapo de paz e estabeleceram laços familiares estáveis. Uma complexidade sem tamanho na afirmação do autor: “Existem muitas Áfricas no Brasil.”

A tese de Laurentino Gomes é de que, principalmente entre os séculos 18 e 19, a escravidão no país se tornou algo tão banal, tão encrustada na vida do país, tão comum e habitual no cotidiano da sociedade, tão aceitável e totalmente conveniente para as pessoas, que até os escravos alforriados, aqueles que conquistavam a liberdade por vias legais, desejavam comprar escravos. E compravam.

As naus carregadas de escravos negros que deixavam a costa da África com destino ao Brasil durante o século 16 e 19, sempre tinham companhia. Centenas de tubarões que acompanhavam de perto os navios durante toda a travessia pelo oceano Atlântico, uma jornada que durava aproximadamente dois meses.

Os tubarões tinham aprendido, ao longo dos anos, algo sinistro. Sabiam que poderiam se alimentar de corpos de escravos lançados ao mar diariamente. Homens e mulheres padecidos durante uma viagem desumana. Uma viagem que reservava uma existência ainda mais desumana em solo brasileiro.

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. | Foto: Divulgação

Serviço:

“Escravidão Volume II – Da Corrida do Ouro em Minas Gerais até a Chegada da Corte de Dom João ao Brasil”

Autor – Laurentino Gomes

Editora – Globo

Páginas – 512

Quanto – R$ 59,90 (papel) e R$ 39,90 (e-book)

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