VOLTA AO MUNDO EM 88 INSÔNIAS
PUBLICAÇÃO
terça-feira, 16 de maio de 2000
Marcos Losnak De Londrina Especial para a Folha2
Dar volta ao mundo foi um sonho acalentado por muito tempo no coração dos aventureiros do passado. O escritor Júlio Verne (1828 - 1905) eternizou esse desejo no clássico Volta ao Mundo em Oitenta Dias. Nos dias presentes, circundar o planeta deixou de ser um desafio graças às inúmeras possibilidades de transporte.
Hoje, não é suficiente dar volta ao mundo, é preciso realizar tal façanha da maneira mais difícil possível. O trajeto marítimo mais difícil que se tem notícia é a circunavegação do planeta através da Antártida utilizando um barco a vela. O frio, os fortes ventos e a presença constante de icebergs, assustam qualquer herói, o caminho torna-se um verdadeiro risco de vida.
Esse foi justamente o último desafio do navegador brasileiro Amyr Klink. Para tornar o desafio mais complicado, realizou o trajeto sozinho, praticamente sem escalas. O relato da viagem acaba de ser publicado no livro Mar Sem Fim que acaba de ser lançado pela Editora Companhia das Letras.
Amyr Klink é um velho conhecido dos amantes dos mares. Em 1984 atravessou sozinho o Oceano Atlântico, da África ao Brasil, utilizando um barco a remo. Em 1990 percorreu os dois pólos, o Ártico e a Antártida no veleiro Paratii numa viagem solitária que durou quase dois anos. A experiência deu origem a dois livros, Cem Dias Entre Céu e Mar e Paratii - Entre Dois Pólos respectivamente.
A bordo do veleiro Paratii, Amyr Klink levou quatro meses para contornar o continente antártico. Seu maior desafio era manter-se alerta para não chocar-se com blocos de gelo e grandes icebergs. Mesmo com o barco equipado com celular e radar, era obrigado a obedecer uma rotina dolorosa: duas horas de vigília e quarenta minutos de sono.
Nesse ritmo, após dois meses de navegação, o desgaste era evidente: Vivi uma pressão muito grande, em que o cansaço físico e os pequenos sofrimentos, como frio e desconforto - na verdade poucos para uma viagem tão larga - não foram o maior problema. Duro mesmo foi o esgotamento mental. Não saber o que ia acontecer no minuto seguinte, não poder relaxar um segundo, não ter certeza de nada além do frio, da distância, meses seguidos.
A grande façanha de Klink não foi contornar a Antártida num veleiro, mas realizar tal trajeto sozinho. Ato nunca realizado por nenhum outro navegador.
James Cook foi o primeiro navegador a contornar o continente antártico em dois veleiros numa viagem que durou três anos, entre 1772 e 1775. Utilizando navios mais leves, capazes de navegar em águas pouco profundas, auxiliado por métodos capazes de vencer o escorbuto, o explorador inglês é considerado o grande inaugurador da chamada era da precisão nas navegações.
Após o inglês Cook, o comandante Taddeus Bellingshausen chefiando uma expedição russa, com dois navios, conseguiu realizar a mesma façanha 47 anos depois do navegador inglês. A grande diferença é que os russos conseguiram contornar o continente antártico numa latitude maior, marca até hoje inigualável para um veleiro.
O relato de Amyr Klink em Mar Sem Fim possui um diferencial em seu interior inexistente em seus livros anteriores: a esperada volta ao seio do lar. Casado e pai das pequenas gêmeas Laura e Tamara, sua narrativa deixa transparecer uma viagem mais séria, baseada num exercício de técnica. O desafio deixa de ser temperado pela aventura para se solidificar como missão a ser cumprida. A volta, o encontro com a esposa e filha, confere uma nova abordagem à navegação.
Indagado para que servia uma viagem desse tipo, Klink respondeu com as seguintes palavras: Precisamente para nada, e não há de fato nada de útil em viajar meses a fio para simplesmente voltar ao ponto de partida. Porém a inútil circunavegação que eu completara era a minha realização mais deliciosa. Difícil de explicar. Há montanhas de inutilidades na história da humanidade, atos e obras que se tornaram importantes pelo simples fato de estarem completos, pelo modo como foram feitos, pelo símbolo que representam. Completar a viagem era a mais importante que eu tinha pela frente. Trezentos e sessenta graus completos longe de casa não bastavam. Eu precisava voltar para casa, abraçar minha família, agradecer a quem me ajudara, pagar as contas que restavam.
Mesmo não assumindo a imagem de herói em sua saga contemporânea, Klink, em suas viagens, possui alguma similaridade com o arquétipo do herói mítico. Para o mitólogo Joseph Campbell, o herói mitológico é alguém que deu a própria vida por algo que ele mesmo. Não é aquele que realiza coisas que não conseguimos realizar, mas aquele que vive a vida em termos de experiência e, portanto, de conhecimento, do mistério intrínseco da vida e do seu próprio mistério - isso confere à vida uma nova radiância.
Talvez a jornada do herói mítico da antiguidade tenha sido substituída pela necessidade de experiências concretas, reais e individuais. Um assunto a ser estudado. Nas palavras de Amyr Klink, estaria encerrado o tempo em que as pessoas fazem uso de experiências alheias: Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar do calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver.
Mar Sem Fim de Amyr Klink, Editora Companhia das Letras, projeto gráfico de Hélio de Almeida, fotos de Amyr Klink, Julio Fiadi, Edu Mello e Marina Bandeira Klink, 272 páginas, R$ 26,50.